Sindical e Previdência

Navio Raul Soares - Memórias do Cárcere Flutuante

Sindicalista Argeu Anacleto: uma das poucas vozes que restam do Cárcere Flutuante

Publicado em 24/10/2013 às 10:16

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Argeu Anacleto da Silva era sindicalista portuário em 1964 e, hoje, é uma das poucas vozes que sobraram dos calabouços do navio-prisão Raul Soares, onde ficou preso por 75 dias. Ele relata suas memórias do cárcere flutuante e da repressão ao sindicalismo e diz que mexer na ferida cicatrizada ainda causa dor em sua alma.

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Os antigos companheiros das Docas se perderam pelo tempo e quase todos já morreram. Os poucos, que estão vivos, se encontram muito doentes, com sequelas do cárcere e não podem mais se locomover e muito menos falar. As vozes, que se opunham ao sistema, em 1964, e que ficaram trancafiadas no navio-prisão Raul Soares, foram se calando aos poucos pelo decurso do tempo. Mas, nós conseguimos localizar uma dessas poucas vozes. E ela fala de dor, tortura e sofrimento.

"A verdade... de qual verdade o Governo Federal quer saber? Eu busco essa verdade todos os dias, quer seja nos meus sonhos, ou nos meus devaneios. Não me arrependo daquilo que passou, mas também não gosto de mexer em ferida cicatrizada, pois isso incomoda e causa uma dor que parece estar presa em minha alma. Temos é que nos prevenir para que fatos lamentáveis como esse não mais se repitam”. Foi desta forma que o sindicalista portuário no período do início da ditadura militar e preso do navio-prisão Raul Soares, Argeu Anacleto da Silva, de 83 anos, uma das poucas vozes que restam daquele triste período para o sindicalismo de Santos, iniciou sua entrevista.

“O Dr. Thomas Maack, o médico e professor de cabelos de "fogo" me ajudou bastante, me socorreu e me amparou naquele tempo terrível dentro do navio,” disse Argeu, que aos 83 anos, relembra com tristeza do episódio de sua prisão. E fala do tratamento solidário que recebia do médico Thomas Maack. “Ele era uma pessoa especial para todos nós. Era um alemão, tinha os cabelos bem avermelhados, e falava fluentemente o português, pois nos dizia que veio, com seus pais, para o Brasil, ainda bebê de colo”, diz o ex- dirigente sindical portuário.

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Argeu Anacleto da Silva era sindicalista portuário em 1964 e, hoje, é uma das poucas vozes que sobraram dos calabouços do navio-prisão Raul Soares (Foto: Matheus Tagé/DL)

E emenda: “usam a democracia como escudo, mas ainda hoje prevalece o domínio imperialista. Naquele período (da ditadura militar) a democracia virou demoníocracia, mas hoje não está muito diferente, mas não quero e nem devo falar sobre isso. Vocês querem saber o que houve naquela época? Pois eu digo que o que marcou mesmo naquela época foi uma Cidade que se opôs ao regime e apresentou seu protesto com dignidade, honestidade e acabou sofrendo as consequências de uma grande injustiça”, explica.

Quando fala de sua prisão, seu olhos azuis, demonstram o sofrimento de um tempo em que o País não podia respirar democracia, pois volta à sua mente a imagem fantasmagórica de um navio-prisão que ficou no Porto de Santos, local de seu ganha-pão e que deixou essa mesma democracia à deriva por longos anos.

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Sua prisão

Ele conta que foi preso por agentes do antigo Departamento de Ordem Pública e Social (Dops) e ficou 75 dias trancafiado no navio Raul Soares. Primeiro ficou preso no próprio Dops, que se localizava no prédio do Palácio da Polícia, na Avenida São Francisco, no Centro de Santos.

Com a chegada do navio-prisão ao Porto de Santos, ele foi enviado para lá “Aquele navio enorme, de casco negro tinha um aspecto desafiador e sombrio para a sociedade santista. Só quem esteve preso nele sabe da dor e sofrimento de permanecer incomunicável sob tortura psicológicas, vendo companheiros serem castigados sem nada terem feito. Recebi auxílio dos meus companheiros de trabalho, porque até o nosso direito de auxílio-reclusão foi suspenso, sendo pago só depois de muito tempo”, relembra com tristeza o ex- sindicalista.

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“A intenção da ditadura militar não era só nos matar de fome, mas também aos nossos filhos, em casa, que estavam ficando sem o leite, só que os militares não contavam com o amparo e solidariedade humana dos companheiros de cais. E, foi essa solidariedade, que nos deu forças para suportar todas as adversidades. Mas, eu, não posso me queixar porque, graças a Deus, ainda estou aqui vivendo e relembrando esses fatos.”, relata Argeu.

E prossegue: “o que passou se transformou numa ferida já cicatrizada pelo passar do tempo. Faz parte da história. Nós também fazemos parte dessa história, história triste é verdade. Só não gosto de mexer nesse ferimento, pois mesmo cicatrizado, ele fere a minha alma, como feriu a alma do sindicalismo de Santos que nunca mais foi o mesmo. Naquele tempo nós tínhamos união, solidariedade. e companheirismo e sabíamos lutar por nossos direitos”.

Ele diz que é um etecetera...

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Argeu Anacleto diz que os grandes figurões da sociedade possuem faculdade, “mas nós, os trabalhadores, possuímos dificuldade. Eles possuem cultura e são os destaques, enquanto nós, trabalhadores, não temos nada, somos os eteceteras. Eu sou um etecetera... Por isso o trabalhador tem que se unir e se diferenciar pela solidariedade e pelo amor no coração, pois isso é o que diferencia em qualidade humana um etecetera do figurão, compreendeu?”

“Eu não me arrependo de nada”, diz  Sindicalista

Argeu Anacleto da Silva, então conselheiro fiscal do Sindicato dos Operários Portuários de Santos e Região recebeu o autor desta reportagem em um escritório de advocacia, no Centro de Santos, Estado de São Paulo, e foi dizendo que não se arrepende de nada do que fez no passado. “Eu não aceitava as imposições do sistema. Aliás, não aceito ainda hoje. Por isso fiquei entre as dezenas de pessoas detidas por razões políticas, entre elas, muitos sindicalistas”, menciona o ex- dirigente sindical.

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Foi preso, aos 35 anos, e diz que não tinha nenhum compromisso com partidos políticos, mas sim com seu trabalho, sua família e seus companheiros do porto. “Minha luta não foi individualista, como ocorre hoje, salvo algumas poucas exceções. Lutava para levar mais pão à mesa dos meus companheiros, pois para isso fui eleito pela categoria. E, essa luta, foi rotulada por empresários daquela época, como comunismo. Por isso, pagamos caro, deixamos praticamente nossas vidas naquele navio maldito”, contou Argeu.

Ele menciona que, em 2008, recebeu do Governo Federal uma indenização por seu sofrimento e comparou essa indenização à ação de um morcego. “Ele morde e sangra suas vítimas, mas, depois, vem abanar a sangria. E esse abano veio em termo da indenização".

Castigo do japonês: ser trancado na geladeira

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Argeu, lembra de companheiros sendo torturados e retirados de celas imundas e levados para o “terrível choque término” ao serem colocados nas celas ao lado da caldeira do navio, onde o calor era insuportável e depois levados para a outra cela, próxima ao frigorífico, que era bastante gelada. “O maior castigo que vi, entretanto, foi a do estudante japonês Tomoshi Sumida. De corpo franzino, era constantemente torturado, sendo colocado dentro da geladeira, numa falta de humanidade e de Deus no coração de seus torturadores. Mas, ele resistiu e depois de algum tempo sumiu do interior da embarcação, ninguém soube para onde foi levado, quem sabe a Comissão da Verdade do Governo Federal possa descobrir qual foi seu paradeiro e seu destino”.

Adoentado por causa da comida intragável do navio-prisão, ele diz que foi socorrido pelo Dr.Maack, que recomendava ao comandante do navio que ele deveria comer alimentos leves e também frutas porque havia contraído uma gastrite. “Só que o Capitão dos Portos, na época, Júlio de Sá Bierrembach, proibiu a entrada de frutas no navio, mas, cá entre nós, o Dr. Thomas Maack sempre tomava as nossas dores e brigava por nossos direitos, alegando que o preso-doente era responsabilidade dele e que seu receituário deveria ser obedecido. E, muitas vezes, forneceu, aos companheiros de prisão, seus próprios alimentos, que sua esposa Isa lhes enviava. Eu mesmo fui um dos que recebi esses alimentos.”

Só resta a verdade

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Ele menciona: "o que ocorreu no navio-prisão Raul Soares deve ser apurado, não que isso vá resolver alguma coisa, mas, sim, para dar uma satisfação à sociedade santista, pois nós, os eteceteras, fomos torturados por crime nenhum. E depois, tem uma grande verdade que diz que nada pode ser maior que a própria verdade".

E conclui: "a presidente Dilma sofreu torturas, lá atrás, no passado e, hoje é a Chefe da Nação, isso reflete outra verdade, a de que nunca se sabe aonde o destino vai te levar e no caso da nossa presidenta, o destino a levou ao cargo em que ela tem o poder de apurar a verdade dos tempos sombrios deste País. E um desses tempos esteve ancorado aqui em nosso porto e chamava-se Raul Soares, o navio-presídio da ditadura".

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