Sindical e Previdência

Navio Raul Soares - Cárcece flutuante: direitos humanos à deriva no porto de Santos

Navio-prisão Raul Soares é um triste e sombrio capítulo na história sindical de Santos e do País

Publicado em 24/04/2014 às 12:58

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Esta é uma história real de sobrevivência, resistência e coragem diante de torturas e humilhações nos calabouços de um navio-presídio, ancorado no Porto de santos, em 1964, no início da ditadura militar no Brasil. Os poucos personagens que restam deste triste capítulo para o sindicalismo do País, contam, no cinquentenário deste episódio triste e humilhante, suas memórias nesta reportagem especial sobre o sindicalismo e falam das constantes torturas psicológicas a que eram submetidos.

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São pessoas, hoje famosas, como o médico e cientista americano Thomas Maack, professor emérito da Cornell Universidade de Nova Iorque e seu colega, igualmente médico e cientista Hildebrando Pereira da Silva, que tiveram que fugir do País;  e também de pessoas anônimas, como o sindicalista portuário Argeu Anacleto, ou Ademar dos Santos, Ademarzinho, que não cometeram crime algum, mas sofreram as humilhações do cárcere flutuante. Eles querem apuração da verdade, por parte do Governo Federal, para amenizar a dor e o sofrimento perpetuados através destes 50 anos. 

“Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos civilizados.” (Vladimir Herzog)
Santos, junho de 1964, cais do maior porto da América Latina. Era uma madrugada fria, de chuva intermitente e de ventos fortes. A maré batia no negro casco da pesada embarcação, que mesmo ancorada num banco de areia, desde 24 de abril daquele ano, trepidava lentamente com as marolas formadas pelas águas em elevação.

O jovem médico, de cabelos de “fogo”, é acordado no rude catre de sua cela inexpugnável, no interior do navio-prisão Raul Soares, pelos gritos de um soldado da Marinha do Brasil que lhe apontava uma metralhadora em direção ao seu peito. O soldado estava nervoso. Muito nervoso. A ponto de tremer com a arma na mão. É que, um preso havia tentado o suicídio e cortado os pulsos. Alegava que não aguentava mais viver as torturas, pois as violências físicas e psicológicas imperavam no interior daquele navio-presídio.

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Thomas Maack, preso e também personagem do navio, se exilou em Nova Iorque (Foto: Matheus Tagé/DL)

Ele sangrava muito e o sangue escorria de seus pulsos para o chão no corredor do navio. Foi levado para a enfermaria, mas não havia médico e nem enfermeiros na embarcação. Ao lado, entretanto, ficava a cela do jovem médico de nacionalidade alemã e de cabelos ruivos ou avermelhados, que havia sido preso no prédio da USP, em São Paulo, com ordens superiores e expressas de que deveria ficar incomunicável. Ou seja: não poderia ter nenhum contato dentro e nem no convés do navio, improvisado como presídio-flutuante.

Desesperado e sem saber o que fazer diante dessa situação de emergência, principalmente após ver e rever o rastro de sangue deixado no chão da embarcação, o soldado da Marinha resolveu não mais obedecer essa ordem, infringir a hierarquia, e acordar o preso, pois sabia que ele era médico.

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Este episódio, que estamos narrando, cinco décadas depois, foi contado pelo próprio personagem principal, direto de Nova Iorque, Estados Unidos. Dr. Tomas Maack é o médico ou o personagem, que ainda se emociona ao relembrar os fatos.

O soldado gritava: “Você é médico, não é? Então atenda essa emergência”. Thomas Maack, detido pela recém Ditadura Militar implantada no Brasil e que havia sido levado há poucos dias aos calabouços do navio-prisão, foi retirado de sua cela e conduzido a uma outra, bem próximo da sua, uma espécie de enfermaria, mas sem médicos, sem enfermeiros e também quase sem nenhum tipo de material de primeiros-socorros.

“Falei para o soldado abaixar a arma porque não tinha condições de atender o paciente com uma metralhadora apontada para minha direção. Ao examinar o prisioneiro ferido, percebi que o corte era apenas superficial, só que o sangue continuava abundante”, relata Thomas Maack.

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E prosseguiu: “Fiz o atendimento mediante uma sutura e pedi que ele fosse encaminhado ao hospital sob o argumento de que não iria me responsabilizar por sua vida, uma vez que ele havia perdido muito sangue. Sem contar que poderia pegar uma infecção pois, no navio, não havia condições higiênicas de atendimento”, enfatiza o médico. Diante desse diagnóstico, foi prontamente atendido e o preso encaminhado à Santa Casa de Santos.

Personagem do cárcere flutuante

Este episódio do primeiro atendimento médico dentro do navio, não só salvou a vida do prisioneiro ferido como também mudou a vida do médico Thomas Maack, que estava preso, incomunicável, mas a partir desse fato era constantemente chamado para as emergências médicas no interior da embarcação, onde prestava os primeiros socorros. Com isso, atendeu e conheceu muitos líderes sindicais e foi testemunha dos maus tratos, torturas e terrorismo psicológico a que eram submetidos, conseguindo, finalmente, após longos dias presos, transmitir um recado para sua esposa Isa, em São Paulo, que soube de sua prisão, mas até aquele momento, não sabia para onde ele havia sido levado.

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Maack informa como isso ocorreu: “Devido à minha atividade médica, através de um guarda da polícia marítima de Santos, consegui pela primeira vez mandar um recado para minha esposa dizendo onde estava, quebrando assim a incomunicabilidade com a família sem o conhecimento do Coronel Alvim (Sebastião Alvim). A minha incomunicabilidade oficial somente terminou um pouco antes do navio ser desativado em fins de outubro de 1964”.

Preso no navio e depois expulso do país

“Quando saí do Brasil, em dezembro de 1964, e me exilei nos Estados Unidos, achei que voltaria em breve para obter a cidadania brasileira e retomar minha vida interrompida pela prisão, mas o regime militar durou longos 21 anos, sem contar que fui expulso do País por decreto do Governo Militar”.

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Assim que o processo de expulsão do País foi revogado em fins de 1978, voltei ao Brasil principalmente para visitar os meus pais, já agora envelhecidos e doentes. Com a anistia, em 1979, tentei a volta definitiva ao país, obtendo uma licença prêmio da Cornell para trabalhar um ano na Divisão de Nefrologia da Escola Paulista de Medicina. Há alguns anos ele tem vindo com mais frequência ao Brasil para compromissos profissionais.

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