Continua depois da publicidade
Por Thomas Mack
Cinquenta anos são passados desde o golpe de 1º de abril de 1964 que foi seguido por 21 anos de ditadura. Ainda na década dos meus 20 anos cheguei preso ao navio-prisão Raul Soares na terceira semana de junho, aproximadamente um mês depois que o navio foi ancorado no porto de Santos. Só saí do navio quando este foi desativado em 24 de outubro e no Palácio da Polícia de Santos a minha prisão se prolongou até o dia 15 de dezembro quando fui liberado por um habeas-corpus do Supremo Tribunal. O proposito da prisão em navio era para intimidar o povo, o operariado e principalmente os portuários santistas. Eu fui um dos primeiros prisioneiros no Raul Soares que não era operário ou líder sindical. Acabei também servindo de médico dos meus companheiros de prisão, a última vez que exerci a prática médica antes de me dedicar profissionalmente à vida acadêmica e à pesquisa cientifica em medicina.
Em dezembro do ano passado, já mais próximo dos meus oitenta anos, assisto em Nova Iorque, onde moro há 45 anos, uma mesa redonda em que minha filha Marcia, nascida nos Estados Unidos, era a moderadora da mesa redonda sobre a Comissão Nacional da Verdade no Brasil, patrocinada pelo Centro Cyrus Vance Para Justiça Internacional. Participavam Glenda Mezzarobba, da Comissão Nacional da Verdade, Marcelo Torrelli, Editor-Chefe da Revista Anistia, a revista científica da Comissão Brasileira de Anistia, e James Green Professor de História e Estudos Brasileiros na Universidade Brown. Para a Marcia coordenar e presidir essa mesa redonda era parte de sua atividade profissional já que trabalha para uma companhia americana de advogados dirigindo trabalhos em defesa de direitos humanos. Para mim, todavia, foi difícil me adaptar à realidade de ter uma filha minha moderando um debate numa augusta sala da Ordem dos Advogados de Nova Iorque, nos Estados Unidos, que como todos sabem teve um papel importante na implantação da ditadura no Brasil em 1964. A ditadura que pôs o seu pai na prisão e o obrigou a se exilar nos Estados Unidos, uma sequencia temporal de eventos que fundiria a mente de qualquer pessoa. Mas lá estava eu, em silêncio na audiência, torcendo para Marcia suceder, como ela o fez, no controle do acalorado debate entre os membros da mesa redonda e parte da audiência.
Não cabe aqui detalhar a natureza do debate, exceto para mencionar a intervenção de José Carlos Ugaz Sánchez-Moreno que se encontrava na audiência. José Ugaz é um advogado peruano, reconhecido internacionalmente pelo seu trabalho em direitos humanos não só no Peru, mas em diversos outros países. Ele foi o Procurador Ad-Hoc da República do Peru encarregado de apurar e processar os crimes durante o regime Fugimori. Em sua intervenção ele argumentou que o maior problema da Comissão Nacional da Verdade do Brasil é a sua falta de visibilidade para o público e que a razão principal dessa invisibilidade é a falta de um líder da Comissão que possa ser reconhecido pelo público, que está em contato permanente com a mídia, e que constantemente divulga ao público os trabalhos da Comissão. Eu concordo inteiramente com essa avaliação e já que a Comissão Nacional da Verdade teve seu prazo estendido ela deve seguir essa sugestão e eleger o seu presidente de forma permanente em vez de forma rotatória como está sendo feito atualmente. Esse presidente seria então a face pública da Comissão que faria a divulgação frequente de seus trabalhos e transmitiria entusiasmo ao povo pelo objetivo de averiguar os crimes da ditadura.
Continua depois da publicidade
No dia seguinte ao debate, Gloria Mezzarobba aproveitou a sua vinda para Nova Iorque para obter o meu depoimento sobre a violação dos meus direitos humanos durante a ditadura de 1964. Eu fiquei preso por quase sete meses e fui demitido sumariamente do meu emprego na Faculdade de Medicina da USP por decreto do governador Adhemar de Barros, um dos baluartes civis do golpe militar, com base no Ato Institucional #1 do regime de Castelo Branco. Diversas violações aos meus direitos humanos foram perpetradas no período, inclusive a de manter-me incomunicável por mais de quatro meses, fazer constantes ameaças de prisão da minha esposa, manter diversos pedidos de prisão preventiva após eu ser liberado por um habeas- corpus, anular o meu processo de naturalização e iniciar processo para minha expulsão do Brasil. Essas e muitas outras infâmias, cujo relato seria muito longo detalhar aqui, levaram minha esposa e eu junto com a nossa filha Marisa de um ano e meio de idade a se exilar nos Estados Unidos, enquanto meus pais envelheciam sozinhos no Brasil.
Contando tudo isso e detalhando as condições desumanas no navio-prisão Raul Soares resultou num longo depoimento de 2 horas que foi gravado e agora faz parte das atas da Comissão Nacional da Verdade. Antes de iniciar o depoimento Gloria Mezarobba me perguntou o que eu tinha achado do contencioso debate do dia anterior. A minha resposta foi: "Como já foi dito muitas vezes, a esquerda só se une na prisão". De fato, uma das coisas que eu nunca me esquecerei durante a minha prisão no Raul Soares foi a absoluta unidade de propósito dos meus companheiros de prisão que vinham de diversas tendências da esquerda no Brasil. Era uma identidade de propósito que se centrava na solidariedade, na proteção mútua, em auxiliar um ao outro resolver problemas, na manutenção da moral entre os prisioneiros, na resistência ativa e passiva às infâmias perpetradas pelos nossos algozes no navio, na defesa pragmática de nossos direitos humanos e, muito importante, a de não deixar diferenças políticas intervir com a nossa identidade de propósitos. Parece que fora da prisão esse último elemento se evapora. É uma pena.
Continua depois da publicidade
Antes de iniciar o meu depoimento também lamentei a tendência em certos meios intelectuais, acadêmicos e jornalísticos de divulgar uma falsa objetividade na análise histórica da ditadura de 1964. Para explicar esse lamento vou primeiro abrir um parêntesis e fazer um pequeno desvio em tempo por Berlin na minha viajem de vida do Raul Soares à Nova Iorque. Em 1975 fui passar três meses na Universidade Livre de Berlin, no que era então Berlin Ocidental, para aprender uma técnica que precisava para o meu trabalho de pesquisa. Um técnico do laboratório foi me buscar no aeroporto para me para minha moradia. Durante o caminho ele me indicava os pontos de interesse da cidade. Em um dado momento, passando por uma ponte sobre uma estrada, o técnico me informa: "Essa estrada foi construída por Hitler. Como o senhor o vê ele também fez algumas coisas boas" Eu respondo: “Deve ser a estrada mais cara já construída no mundo" O técnico: " Como assim professor. Eu não sei quanto custou". Ao que finalmente retruco: "Eu sei, dezenas de milhões de mortos”.
Eu não descrevo esse diálogo em Berlin com a intenção de comparar a ditadura de Hitler com a ditadura brasileira, nem os calabouços do Raul Soares com os campos de concentração ou as mortes da segunda guerra mundial, pois essas seriam comparações inverossímeis. Cabe, todavia, comparar o comentário do técnico alemão sobre o papel de Hitler como alguém que faz coisas ruins e algumas coisas boas com a tentativa de alguns no Brasil de fazer balanços da ditadura como tendo aspectos positivos e negativos. Toda vez que eu vejo uma dessas análises em jornais, livros ou revistas me lembro do diálogo em Berlin e me dá um arrepio.
Primeiro tem a questão moral dessa análise - não há como por na balança estradas construídas, crescimento econômico, etc..., de um lado, com as mortes, torturas, famílias destruídas etc..., de outro lado. Além disso, não há como julgar se algo durante a ditadura foi um desenvolvimento positivo, pois para fazer esse julgamento seria necessário saber se esse algo não teria um desenvolvimento muito melhor se o regime democrático tivesse persistido. Na linguagem da minha profissão, falta em todas as análises sobre a "positividade" de alguns aspectos da ditadura um grupo controle, nesse caso a continuidade da democracia no país. Portanto, tentar fazer esse tipo de análise da ditadura brasileira é um exercício em futilidade, sem nenhuma base objetiva, que só serve para confundir a juventude atual.
Continua depois da publicidade
Por fim, passados 50 anos desde a implantação da ditadura mais longa que o país já teve desde a queda do império, pode-se perguntar se o processo de democratização interrompido pela ditadura esta em pleno curso. A minha resposta seria, ainda há muito a fazer. Alguns dos decretos repressivos antidemocráticos estabelecidos pela ditadura ainda persistem até hoje, particularmente na intervenção interna e externa em universidades e sindicatos de trabalhadores e na desigualdade econômica. Eu estou fora do Brasil há muito tempo para poder dar sugestões específicas de como levar adiante o processo democrático do país. Eu tenho certeza, todavia, que organização democrática, unidade de propósitos e vigilância, fatores que nos faltaram antes do golpe de 1o de abril de 1964, são o fundamento para que as forças progressistas alcancem a obtenção das plenas liberdades democráticas das quais fazem parte inexorável a luta pela educação universal e pela justiça social e econômica no Brasil.