Sindical e Previdência
Homem que decretou intervenção nos sindicatos e comandou o Porto de Santos, Júlio de Sá Bierrembach, recebeu a reportagem do DL em sua residência, no Rio de Janeiro
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Enviado especial ao Rio de Janeiro
Ele comandou o maior porto da América Latina no início da ditadura militar no Brasil e decretou intervenção nos sindicatos de trabalhadores portuários e marítimos. E quase cinquenta anos depois reafirma, ao contrário do que está registrado na história sindical, que os presos do navio Raul Soares, que ficaram sob seus cuidados, não foram torturados.
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O Almirante de Esquadra Júlio de Sá Bierrembach, capitão dos Portos do Estado de São Paulo, em 1964, que acumulou também as funções de Delegado Marítimo em Santos, recebeu, no Rio de Janeiro, em seu apartamento no nobre bairro de Ipanema, a reportagem do DL e ao saber que o assunto era o navio-prisão Raul Soares e a intervenção que decretou nos sindicatos portuários, foi logo dizendo. “Você está tentando tirar minhoca de asfalto, pois preso meu não foi torturado, mas se houve algum erro, eu sou o responsável”.
Aos 96 anos de idade e com voz ainda firme, ele relembrou a época de um capítulo sombrio para o sindicalismo de Santos e para a própria história política da cidade. “Eu não admito que façam comparações entre o Doi-Codi e o navio Raul Soares. Pois no Doi-Codi houve torturas e mortes e no navio isto não ocorreu”, diz o almirante. Sua revolta é contra um jornal do Rio, de circulação nacional, que fez um mapa com locais de torturas apontados pela Comissão Nacional da Verdade. E arremata: “No navio Raul Soares ninguém morreu, ao contrário do Doi-Codi, onde ocorreram torturas e mortes, como a do jornalista Vladimir Herzog”.
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Ele relembra bem dos fatos ocorridos há quase 50 anos, naquela terça-feira de 31 de março de 1964, quando o País vivia o inicio da ditadura militar e ele foi convidado pelo Governador de São Paulo Adhemar de Barros, para comandar o Porto de Santos, o maior da América Latina. “Desci a serra em direção a Santos acompanhado de apenas um colega de farda. A Via Anchieta, de São Paulo até a Baixada Santista, foi percorrida com o nosso veículo em excesso de velocidade e com o caminho sendo aberto por um solitário policial rodoviário anônimo em sua motocicleta, pois o Governador pensava que eu encontraria resistência na altura da Refinaria Presidente Bernardes, em Cubatão, um temido reduto sindical”.
E prossegue: “ Eu tinha em mãos ordem do então governador de São Paulo, Adhemar de Barros, para assumir o controle da Capitania e da Delegacia Marítima de Santos, uma vez que o governador estava envolvido de corpo e alma no levante contra o presidente João Goulart, que dirigia legalmente o País, após a renúncia de Jânio Quadros”.
Bierrembach fala qual era a sua missão: terminar com as greves no maior porto de Santos, dar apoio ao movimento que havia eclodido no País e fazer o porto voltar a funcionar. E para isso, menciona que teve que decretar intervenção nos sindicatos.
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Ele tomou posse em 31 de março de 1964 e ficou até 5 de janeiro de 1965, quando foi nomeado adjunto do adido naval na Embaixada do Brasil em Washington (EUA).
Ele disse que já foi ouvido pela Comissão Nacional da Verdade a quem reiterou não ter havido torturas. “A comida dos presos era a mesma dos oficiais, isto eu te garanto. É claro, que a prisão é uma coisa humilhante, mas preso meu não foi torturado. Dizem que as torturas ocorriam próximo à caldeira, mas eu digo que o navio não tinha caldeira, estava apagado. Agora, aparece lá uma mulher de um preso que morreu com a perna queimada e diz que estava queimada porque encostou em uma chapa da caldeira do Raul Soares. Ele não tinha caldeira. O navio estava apagado. Tinha um motor a diesel que dava energia. Eu respondo pelos comandantes do Raul Soares. Aliás, eles estavam lá escolhidos por mim”.
Perguntamos se ele ia constantemente ao navio para afirmar, com tanta certeza, que não havia as torturas tão mencionadas pelos presos e ele diz que não precisava ir ao navio. “Fui poucas vezes porque não precisava, eu tinha muitos problemas para resolver na dupla função como capitão dos portos e delegado marítimo e meus homens no comando do navio eram de confiança total e sabiam que os presos, pelo menos os meus, eram intocáveis”.
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Ele volta no tempo: “cheguei à Capitania, em Santos, com ordens do Governador Adhemar de Barros e assumi sem nenhuma resistência. Minha primeira decisão foi nomear interventores em cada um dos sindicatos do Porto para acabar com as greves e colocar o porto funcionando, pois a retomada do trabalho no cais, era fundamental para o País que vivia dias turbulentos com a deposição do presidente João Goulart”.
Informa que, naquele ano e no ano anterior, em 1963, Santos havia parado por mais de 200 dias, de greves que envolveram cerca de 85 mil homens. “Eu tinha que tomar as providências para colocar o porto em funcionamento e também a Cosipa e a Refinaria. A situação era insustentável”.
Decidiu decretar intervenção nos sindicatos e o comunicado foi feito na própria Capitania direto aos líderes sindicais convidados para sua posse. A ordem de Adhemar de Barros, segundo afirma Bierrembach, concedia-lhe poderes até para o fuzilamento se houvesse resistência e imposições ao seu comando no cargo. “Mas não foi preciso agir desta forma e também não o faria, mas ninguém contestou ou pagou para ver, mas, sempre é bom lembrar que eu também corria os meus riscos”.
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Bierrembach informa que rechaçou a possibilidade de nomear interventores militares, pois imaginava que cada sindicato teria um homem de bem em seus quadros sociais para ser indicado. “Desta forma um estivador foi escolhido para o Sindicato da Estiva, um conferente para o Sindicato dos Conferentes até envolver os 12 sindicatos sob intervenção que foram por mim visitados no dia seguinte para dar posse aos interventores”.
Relembra que o sindicato dos Estivadores, que era o maior deles, foi o primeiro. E diz que naquele mesmo dia, 70% dos portuários voltaram ao trabalho e o restante no dia seguinte.
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O ex-capitão dos portos conta que em 24 de abril de 1964, uma sexta-feira, chegou ao porto de Santos o desativado navio Raul Soares, que pertencia ao Lloyd Brasileiro. Sem forças para navegar, foi levado pelo rebocador Tridente, da Marinha. A embarcação foi adaptada para receber presos políticos e sindicalistas durante a ditadura militar e permaneceu ancorado sobre um banco de areia, próximo à Ilha Barnabé até 23 de outubro daquele ano.
Lembra que, em 30 de abril, recebeu a primeira leva de presos, e diz que não tinha poderes para cancelar detenções ou interromper interrogatórios. Mas garante, ao contrário do que a história sindical registra, “preso meu era intocável e nenhum deles foi torturado”.
A primeira leva de presos era composta por sargentos do Exército e da Aeronáutica anteriormente recolhidos em instalações militares da região. Vieram depois: sindicalistas, jornalistas, médicos, estudantes e políticos, muitos deles com vários inquéritos para responder e que já estavam presos em outras cadeias da Baixada.
E por que um navio-prisão? Ele responde que as cadeias estavam abarrotadas e que por isso o Raul Soares foi preparado e adaptado como presídio flutuante no Rio de Janeiro e enviado a Santos.
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Bierrembach revela que ele mesmo, pouco antes de ser nomeado capitão dos portos, estava respondendo a um inquérito na Marinha por insubordinação ao devolver uma medalha concedida pelo Ministro da Marinha.
E eu perguntei-lhe. O Sr. poderia também ter sido um dos presos do navio-prisão Raul Soares?
Ele sorri e responde com semblante de surpresa. “É verdade, poderia ter sido também um dos presos do Raul Soares, mas a minha nomeação como Capitão dos Portos me livrou do inquérito e surpreso mesmo ficou o ministro da Marinha quando soube da minha nomeação e posse. Mas ele, de pronto, deu a sua aprovação e com isso o episódio da devolução da medalha foi superado”.
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