Chamado de filho pela bióloga Carla Cerqueira, o hipopótamo Ramón é hoje a sensação do Parque Ecológico Voturuá / Reprodução
Continua depois da publicidade
Vazio. O espaço que por cerca de 22 anos abrigou os leões no Zoológico de São Vicente, localizado no Parque Ecológico Voturuá, está agora sem nada. No dia 27 de fevereiro, Na-weh, o último dos seis leões que passou pelo local, se foi. As criaturas majestosas deixaram um vazio não só na área em que viviam, mas na vida de quem passou os anos tentando tirar as marcas deixadas por outros humanos, e dar conforto aos animais.
Nativos da África e da Ásia, não deveriam sequer ter chegado à primeira cidade do Brasil. O ideal é que fossem livres, mas todos que passaram pelo local tiveram, direta ou indiretamente, suas vidas relacionadas ao circo. Malvisto por muitos, o zoológico foi a morada para quem não sobreviveria na natureza. Na-weh se foi e, junto com ele, a era dos leões no Parque Ecológico Voturuá.
Continua depois da publicidade
Para Carla Cerqueira, bióloga do Zoológico de São Vicente há 18 anos, o zoo é, na verdade, "um refúgio dos animais que foram resgatados". Ela explica que os zoológicos não tiram os animais de seu habitat natural, tampouco os compram. "Nossa função é cuidar daqueles que não podem ser devolvidos à
natureza".
O fim da era dos leões no parque, no entanto, tem um lado positivo. "As pessoas ficam perguntando quando vai ter outro, mas é importante que elas saibam que teve uma fase com leões, porque eles ou seus pais foram resgatados. Agora, felizmente, não temos mais leões abandonados. Então, não há motivo para ter outros", esclarece a bióloga.
Continua depois da publicidade
O antigo Horto Municipal de São Vicente só se transformou em um zoológico por causa dos leões. Nagan e Noala, que fizeram parte de um circo, foram doados ao prefeito, que realizou os trâmites para transformar o local em zoológico.
"Num mundo onde já não era aceitável ter animais em espetáculos, houve muito abandono. Muitos leões largados, deixados para trás. E os zoos, sempre tão mal vistos, acolheram eles, cuidaram deles, zelaram por eles", diz Carla em um texto que viralizou nas redes sociais.
As marcas deixadas pelo circo não se foram com o fim dos espetáculos. Filho do casal, Nanji foi o primeiro leão nascido na Baixada Santista. Antes dele, Noala teve vários abortos ou filhotes natimortos. Em 2005, mesmo ano em que Nanji nasceu, Noala faleceu. Catorze anos depois, Nanji morreu de câncer.
Continua depois da publicidade
Em 2006, a leoa Kiara, que passou por um circo e cativeiros particulares, chegou ao zoológico. "Ainda lembro quando ela chegou, tão avessa ao contato humano, arisca, brava. Que horrores teria vivido para detestar tanto as pessoas? Foram anos até ela deixar alguém se aproximar, e perdoar os humanos", relata a bióloga em texto nas redes sociais.
Ainda em 2006, Kiara teve dois filhotes com o leão Nagan: Naja e Na-weh.
Dos seis leões que passaram por São Vicente, Nagan é o único que está vivo. Agora, ele vive no Zoológico de Americana, no interior de São Paulo.
Continua depois da publicidade
A bióloga relembra que, de todos, Nanji foi o mais próximo dos humanos. Vítima de maus-tratos antes de chegar ao zoo, Noala não tinha instinto materno, por isso, Nanji precisou ser cuidado pela equipe do Parque.
"A gente pegava no colo, dava mamadeira. O laço era muito forte, por isso muitas vezes quando eu chegava perto do recinto ele já descia, dava até a barriga para coçar", relembra. "Eu falava 'quem é o gatão da mamãe?' e ele vinha. Era o meu gatão".
Agora vazio, o espaço ainda permanece como está, mas não receberá outros leões ou animais de outra espécie. "A ideia é demolir, estamos pensando em fazer uma praça em homenagem aos leões, mas por enquanto não há nada concreto", explica Carla. "Os recintos são feitos para cada espécie. Aquele era para leões, então não tem como colocar outro bicho lá, por isso não terá mais função", completa.
Continua depois da publicidade
A recente perda do último leão, Na-weh, ainda traz a sensação de tristeza ao ver o espaço vazio. "Tem gente que até fala que ouviu um rugido. Acho que por essa sensação também vai ser uma boa ideia modificar o espaço".
Ainda no texto que viralizou nas redes, a bióloga fala sobre o amor aos animais. "A era do zoo não foi perfeita, sabemos. Mas nele os leões ganharam abrigo, alimento e recolhimento. Escaparam da sina de seus ancestrais, de ter as garras arrancadas e serem treinados com chicotes e choques elétricos. Não tiveram que viver viajando em jaulas apertadas, de cidade em cidade. Infelizmente, nunca puderam ser levados a uma savana africana e conhecer a liberdade que mereciam, não sobreviveriam, se tivessem essa chance. Mas o que lhes faltou em natureza, sobrou em amor. Sim, cada um deles foi por nós muito amados".
A era dos leões no Parque Ecológico Voturuá acabou, mas o zoológico não. Cerca de 100 animais, entre aves, répteis e mamíferos, de 23 espécies diferentes ainda são abrigados no local.
Continua depois da publicidade
Desde que chegou, aos oito meses e pesando 600 quilos, o hipopótamo Ramón chamou a atenção. Hoje, com 16 anos e cerca de duas toneladas, é a sensação do zoo. Duas vezes ao dia, sua alimentação é feita sob olhares curiosos de crianças e adultos. Agora, com o parque vazio por conta da pandemia de covid-19, Ramón dá sinais de que sente falta da atenção dos humanos.
"A gente manteve os horários de alimentação do Ramón, mesmo sem público. Ele sempre ficava de olho nas pessoas. Agora, quer aproveitar ao máximo a nossa companhia. O tempo que a gente permanece ali, ele fica do lado de fora, não volta pra água. Só de ouvir nossa voz, ele já vem", conta.
De acordo com Carla, vários zoológicos estão fazendo estudos a respeito de como os animais estão reagindo sem a presença do público. "Aqui, os macacos também ficam pedindo muita atenção. Já as araras, ficavam agitadas quando as pessoas passavam, então parece que preferem assim".
Continua depois da publicidade
Chamado de filho pela bióloga, Ramón parece não gostar quando Carla tira férias. "Quando eu volto, ele não quer falar comigo, fica emburrado. Aí eu peço desculpas, digo que a mamãe está de volta e levo melancia, que é a fruta favorita dele, para agradar. Depois de uma semana virando a cara para mim, ele me perdoa".
Há algum tempo o zoológico não recebe novos animais, segundo Carla. "Nosso trabalho com recebimento de animais hoje em dia é com os bichos-preguiça. A gente recebe, cuida e depois solta na natureza. É o que gostaríamos de fazer com todos".
No Dia Nacional dos Animais, celebrado hoje (14), a bióloga frisa que "apesar de o zoológico receber visitas da população, o animal não é uma atração". De acordo com ela, os profissionais que atuam no local tentam dar uma sobrevida aos bichos, mas reitera: "eles não são para entretenimento das pessoas".
Continua depois da publicidade