SANTOS

Ato registra história tenebrosa que marcou Santos na ditadura

A jornalista e advogada Lídia Maria de Melo, autora do livro 'Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós', relembra o martírio

Carlos Ratton

Publicado em 24/04/2023 às 07:00

Compartilhe:

Compartilhe no WhatsApp Compartilhe no Facebook Compartilhe no Twitter Compartilhe por E-mail

Lídia Maria, no destaque, revela as agruras sofridas pelos presos no navio-prisão Raul Soares, durante parte da Ditadura no Brasil / Reprodução e Nair Bueno/DL

Continua depois da publicidade

Hoje, às 18h30, no ponto de embarque das barcas para Vicente de Carvalho, atrás da antiga Alfândega, no Centro de Santos, será realizado, pelo Comitê Popular de Santos por Memória, Verdade e Justiça, o VII Sítio de Consciência Raul Soares Nunca Mais!

Faça parte do grupo do Diário no WhatsApp e Telegram.
Mantenha-se bem informado.

O navio-prisão é considerado uma sombra que paira sobre a Baixada Santista até hoje e que não deve ser esquecida. Nele, lideranças sindicais foram presas e torturadas em 1964, após golpe cívico-militar que gerou uma ditadura que durou 21 anos no País.

Continua depois da publicidade

Leia Também

• Reforma de escola na Zona Noroeste de Santos está na segunda fase

• Bom Prato de Santos passará a funcionar nos finais de semana e feriados

• Morre Juca Chaves, o menestrel que desafiou a ditadura, aos 84 anos

Faça parte do grupo do Diário no WhatsApp e Telegram.
Mantenha-se bem informado.

E para lembrar as agruras sofridas dentro e fora da embarcação, o Diário conversou com a jornalista, advogada e professora Universitária, Lídia Maria de Melo, autora do livro 'Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós' - uma referência na literatura sobre o tema.

Continua depois da publicidade

Na inocência de sua infância, Lídia, junto com sua mãe, Mercedes Gomes de Sá e duas irmãs (uma recém-nascida), acompanhou o sofrimento de seu pai, Iradil Santos Mello, preso por ser diretor do então Sindicato dos Operários
Portuários.

"Meu pai foi preso no dia do golpe. Ele passou a noite anterior no sindicato porque já sabia que existia uma movimentação. Estava meu pai e mais cinco diretores. O presidente do sindicato e de demais entidades sindicais se esconderam preventivamente. Cerca de 200 policiais e militares cercaram o sindicato que, à época, representava mais de 10 mil trabalhadores, um dos mais fortes de Santos", lembra Lídia.

A jornalista revela que seu pai foi levado primeiramente à Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), depois incorporada ao Departamento de Ordem Política e Social (que manteve a sigla), permanecendo no local por 18 dias porque o navio-prisão ainda não havia
chegado.

Continua depois da publicidade

Ela conta que muita gente foi presa depois. Após ser liberado, Iradil, então com apenas 34 anos, voltou ao trabalho nas Docas. Diretorias dos sindicatos foram destituídas e nomeados interventores. Após abertura de inquérito civil-militar, ele começou a ser chamado sistematicamente para prestar depoimentos. Queriam que ele confirmasse teses pré-estabelecidas e delatasse companheiros, principalmente ligados ao partido comunista O que ele não fez.

"Disseram o seguinte: já que você não quer colaborar, vai para o Raul Soares, o que acabou ocorrendo em agosto de 1964. Era para ele ficar 30 dias, mas as prisões eram renovadas. Meu pai saia, era conduzido à Capitania dos Portos e, no mesmo dia, voltava. Ele foi demitido das Docas quando ainda estava preso sem nenhuma acusação ou processo. As últimas pessoas só saíram do Raul Soares em 23 de outubro. O navio-prisão chegou 24 de abril e 2 de novembro foi levado para o Rio de Janeiro", lembra.

TORTURA.

Continua depois da publicidade

Lídia afirma que, no fim dos anos 90 e começo dos anos 2.000, uma comissão estudou a situação dos presos no Raul Soares, ouviu relatos e, num relatório, ficou claro que houve torturas psicológicas e físicas na embarcação.

Uma delas era a colocação de presos em ambientes extremamente frios e quentes, sequencialmente, além de submetê-los a ambientes alagados, apartados, insalubres e sanitariamente condenáveis. Para a professora, as famílias dos presos também passaram pelo calvário fora e dentro do navio.

"Minha mãe, aos 26 anos, teve que trabalhar muito para garantir o sustento da família. As visitas ao meu pai eram sob a presença de homens armados. Uma vez tive que ir ao banheiro dentro do navio e o lugar era imundo, sem condições de uso. Minha tia fez de tudo para que eu não tivesse contato com nada", lembra.

Continua depois da publicidade

Lídia continua: "eu era criança e já sentia a pressão, a humilhação de subir as escadas do navio, de saia, e ver homens embaixo olhando, entre outras coisas. Até hoje tenho traumas de embarcações. Fora de casa, minha mãe, por segurança, nos instruía a não comentar nada. Minha irmã mais velha desenvolveu uma doença e faleceu. Minha mãe teve que lidar com tudo isso. Quando, na escola, perguntavam a profissão de meu pai, nós dizíamos: ele trabalha por conta própria".

ANISTIA.

Lídia Maria lembra que, mesmo com a anistia, seu pai só foi readmitido após ingressar na Justiça. Mesmo assim, a reparação promovida pelo Governo nunca ocorreu de forma justa. "Cada vez que entrava um novo auditor, os pagamentos eram suspensos e meu pai tinha que recorrer à Justiça. Meu pai faleceu em dezembro de 1999. Minha mãe passou a receber a pensão, mas até hoje o imposto de renda cobrado indevidamente nunca foi devolvido. Minha mãe faleceu em 2021", lamenta.

Continua depois da publicidade

BOLSONARO.

A jornalista e advogada não consegue entender como brasileiros conseguem negar que a Ditadura Brasileira causou traumas e sofrimento para milhares de pessoas. Quando ela viu Jair Bolsonaro homenageando Carlos Alberto Brilhante Ustra - declarado torturador pela Justiça - no impeachment da presidente Dilma Rousseff, não acreditou.

"Veio a redemocratização, acreditávamos que nunca mais um governo autoritário voltaria, mas a ameaça chegou. Nosso erro foi não punir os militares e civis que mantiveram a Ditadura, como ocorreu na Argentina e Chile, por exemplo. Milhares de intelectuais, artistas, estudantes e trabalhadores foram presos, exilados e até mortos apenas por pensar diferente. Precisamos manter a história viva, nas escolas, para que isso nunca mais volte, nunca mais se repita", conclui Lídia Maria.

Continua depois da publicidade

Navio-prisão ancorado no porto santista intimidava população  

Construído em 1900 na Alemanha, o Navio Raul Soares chegou ao Brasil em 1925 ao ser adquirido pela empresa Lloyd Brasileiro para transporte de cargas e passageiros.

Em 1964, já sem condições de uso, estava prestes a ser descartado, quando foi requisitado pelo ministro da Marinha para cumprir uma função que já havia desempenhado no Levante Comunista de 1935: a de navio-prisão.

Continua depois da publicidade

Ancorado no porto de Santos, o navio adernado e insalubre teve seus porões alagados transformados em celas e o calabouço em local de torturas.

Para lá foram enviados, sobretudo, os sindicalistas da até então agitada cidade de Santos, além de militares que resistiram ao golpe. Todos ficaram com sequelas.

O aparato foi desativado em novembro, após o envio de parte dos presos para outras prisões e a libertação dos demais. O navio foi então desmontado. 

História que o tempo não pode apagar

Para o jornalista Francisco Aloise, autor do livro-reportagem 'Cárcere Flutuante' e 'Cárcere Flutuante - Verdade ainda submersa', ambos vencedores de prêmios de Direitos Humanos outorgados pela Comissão Especial de Direitos Humanos Sobral Pinto da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio Grande do Sul, "nem o tempo pode fechar uma ferida tão profunda como a provocada pela história real de tortura e repressão, que aconteceu há 59 anos, no navio-prisão Raul Soares, ancorado no Porto de Santos, no início da ditadura militar no Brasil.

Aloise lembra que sindicalistas, trabalhadores, políticos, estudantes e até militares, acusados de se opor ao regime militar instalado no País, foram presos e trancafiados no navio, transformado em concentração militar flutuante.

Nele, foram submetidos a todo tipo de tortura física e psicológica. Muitos permaneceram incomunicáveis, ou seja, sem contato com seus familiares. "Este foi um capítulo triste e sombrio da história política e sindical do País. Sindicatos foram fechados, sindicalistas e trabalhadores foram perseguidos e presos ou tiveram que buscar exílio fora do Brasil".

O jornalista finaliza dizendo que mesmo durante todos esses anos, a alma inquieta de familiares de presos e dos poucos personagens ainda sobreviventes, não consegue adormecer. "Essa história real deve sempre ser lembrada para que todos a conheçam e para que nunca mais se repita".

Mais lidas

Conteúdos Recomendados

©2025 Diário do Litoral. Todos os Direitos Reservados.

Software