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Já era madrugada de 24 de agosto, e quase todos os ministros estavam reunidos com Getúlio Dornelles Vargas no salão de refeições dos barões de Friburgo do Palácio do Catete, sede do Governo Federal no Rio de Janeiro. Na cabeceira da mesa estava Getúlio Vargas observando aquela reunião que seria o seu penúltimo ato como presidente da República. Alguns poucos ministros fiéis pregavam a resistência contra alas militares que exigiam a renúncia do presidente eleito pelo povo, quatro anos antes.
A morte do major-aviador Rubens Florentino Vaz e o não assassinato do jornalista Carlos Lacerda incendiaram o País, principalmente através de alas da Aeronáutica, guiados pela popularidade dos discursos de Lacerda no rádio, na televisão e em seu jornal, ‘A Tribuna da Imprensa’. Daquele dia, 4 de agosto de 1954, a história brasileira mudou completamente.
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O tiro no peito, naquela mesma madrugada, foi um ato nobre que adiou o Golpe Militar em dez anos. A outra opção era resistir e derramar o sangue de jovens brasileiros, além de rasgar “mais uma constituição”, como Vargas disse que não faria. “Getúlio suicidou-se”, diziam os jornais em 25 de agosto. Para o professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e autor do livro ‘Getúlio’, Juremir Machado da Silva, o tiro no peito inverteu o jogo e foi o “mais genial dos suicídios”. O tiro levou seus adversários de acusadores a acusados, especialmente Carlos Lacerda.
Sessenta anos depois, Vargas vive na história e ‘celebra’ sua eternidade, como profetizou em sua carta-testamento. Antes do último ato como presidente, Vargas saiu da vida, para entrar na história atirando em si mesmo. É impossível contar a história do Brasil e de nosso povo, sem citar a vida política e todas as contradições de Getúlio, em seus quase 20 anos no maior cargo político do país.
Tudo termina como começa
No primeiro parágrafo de ‘O 18 Brumário de Luís Bonaparte’, Karl Marx remete a Hegel e diz que a “história acontece como tragédia”. Marx discorre algumas linhas e completa o pensamento de Hegel dizendo que se a história acontece como tragédia, ela se repete como farsa. O mesmo pensamento dentro do “getulismo” ou “varguismo” diz que “tudo termina como começa”.
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Tudo começa em 1930, com a denominada revolução ou golpe de 1930, um movimento armado comandado por Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul que através de um golpe depuseram o presidente Washington Luís e impediu a posse do presidente eleito, Júlio Prestes. O golpe de 1930 pôs fim à política do ‘café com leite’ e ao período que hoje chamamos de ‘República Velha’.
Getúlio assumiu a Presidência com plenos poderes, derrubou a Constituição de 1891 e governou por decretos até 1934 quando foi aprovada a primeira constituição que ele rasgou. Antes, em 9 de julho de 1932, o estado de São Paulo promoveu a Revolução Constitucionalista, através do movimento MMDC que pretendia derrubar o governo provisório de Vargas, e aprovar uma nova Constituição. Foi a resposta paulista contra a revolução de 1930. O objetivo era recuperar a autonomia que os estados tinham antes do golpe de Getúlio. São Paulo não venceu, mas a constituição foi promulgada dois depois.
Em 1935, os levantes comunistas em Natal (a única cidade que os revoltosos conseguiram a tomada do poder), em Recife e no Rio de Janeiro foram o ponto inicial para Vargas instituir a ditadura. Em 1937, Vargas derrubou a constituição, aprovou outra, e criou o Estado Novo. Prendeu seus adversários, instituiu a tortura, a censura oficial à imprensa através do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), governou de forma fascista, namorou o nazismo, e por pouco não entrou na II Guerra Mundial ao lado da Alemanha de Hitler, em quem se inspirava para discursar.
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A história foi acontecendo como tragédia e em 1946 os militares que chegaram ao poder junto com Vargas, e que subiram de patente graças a ele deram um golpe e o tiraram do poder. A história ocorreu como farsa e, pela primeira vez na vida de seu autor, tudo terminou como havia começado. Um golpe levou Vargas ao poder, e outro o tirou.
A vida e a história
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Getúlio voltou em 1950 nos braços do povo. E de ditador passou ao “pai dos pobres”. Nesse período, criou a Petrobras e monopolizou a exploração do petróleo. Criou as leis trabalhistas, começou a industrialização do País que beneficiou os governos futuros.
“Getúlio Dornelles Vargas já fora tudo na vida, mas tudo mesmo, conservador e revolucionário, ditador e democrata, oligarca e “pai dos padres”, conspirador e vítima de conspiração, predador e presa”, nos dizeres do professor Juremir Machado da Silva, em uma passagem do seu livro ‘Getúlio’.
O tiro no peito foi uma atitude nobre de um presidente contraditório que amava seu país e seu povo, mesmo tendo torturado e matado tantos brasileiros. Ou Vargas atirava no peito, ou punha o exército na rua, rasgava outra constituição, como ressaltou que não faria, e não fez. O tiro de Vargas deu aos seus inimigos o legado da sua morte, como ele escreveu em carta-testamento. Getúlio jurou só sair do Catete morto e cumpriu e, com isso, decepcionou seus inimigos que o queriam ver na lama. Se Vargas não atira no peito, os militares vestidos de branco, azul e verde oliva de 1964 teriam dado o Golpe 10 anos antes.
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Agosto na história política
O mês de agosto se tornou trágico na história política do Brasil. Além do dia 24 de agosto de 1954, Jânio Quadros renunciou ao mandato de presidente da República por motivos ocultos até hoje, em 25 de agosto de 1961. A renúncia de Jânio colocou o Brasil em uma crise política-econômica-social, pois setores conservadores da sociedade, representados pelos militares, não aceitavam a posse do seu vice, João Goulart, exministro do Trabalho de Getúlio. Jango assumiu, mas a tensão continuou até seu estopim, em março de 1964, quando os militares o depuseram em um golpe de estado.
Em 22 de agosto de 1976, em um acidente de automóvel que ainda gera muitos questionamentos, morria Juscelino Kubitschek, fundador de Brasília, que continuou o plano de Vargas de industrialização do País. O mandato de JK ficou conhecido com seu slogan de sua campanha ‘50 anos em 5’, além do plano de 31 metas no período. Nos cinco anos de JK como presidente, a República viveu seu período de maior estabilidade política e de crescimento econômico.
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O dia 13 de agosto ganhou seu lugar na história. Em 2005, morria o último político popular da geração de 1964, Miguel Arraes. Arraes elegeu-se a primeira vez para governo do estado em 1962. Ele foi preso no dia do golpe militar, em 1º de abril de 1964. Saiu da cadeia em 1965 direto para o exílio. No mesmo dia do seu avô e tutor, morreu em Santos o ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos, em um acidente aéreo que chocou o País. As investigações do acidente ainda buscam explicações para a tragédia.
‘O Brasil era medieval antes de 1930’
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Juremir Machado da Silva, doutor em Sociologia da Cultura, professor titular da PUC -RS e autor do livro ‘Getúlio’ (2004).
Podemos dizer que o tiro no peito de Getúlio adiou o Golpe Militar de 1964?
Certamente. Foi, como disse Fernando Jorge, o mais genial dos suicídios. Inverteu o jogo. Transformou Lacerda de acusador em acusado, tirou Getúlio da condição de acuado para a condição de acusador, interferiu nos resultados eleitorais seguintes e mostrou que Vargas era homem de honra. Não foi suicídio. Foi assassinato. Getúlio foi morto pela mídia tendo Carlos Lacerda como pistoleiro de aluguel.
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Getúlio disse que usou o poder para tirar o Brasil do atraso. Ele conseguiu?
Em parte. O Brasil era medieval antes de 1930. Getúlio começou a industrialização do país, criou a legislação trabalhista, inventou uma classe média, produziu, apesar de tudo, cidadania, pois incorporou excluídos, ampliou direitos, ainda que os tenha restringido durante o Estado Novo, e abriu caminho para novos atores sociais. Getúlio era ardiloso. Deu o direito de voto às mulheres. Só não lhes deu as eleições. Faltou levar a legislação trabalhista para o campo. Fazendeiro, Vargas não tocou na reforma agrária. Jango, seu herdeiro, tentou fazê-la. Teve a cabeça cortada pelos milicos, pela mídia e pelo poder econômico.
De ditador ao ‘pai dos pobres’. Como podemos definir a figura de Vargas?
Ditador, revolucionário, conservador, pai dos pobres, mãe dos ricos, democrata, positivista, censor, assassinado pela imprensa, homem de sensibilidade para o social, populista, trabalhista, maquiavélico, ardiloso, genial, Getúlio foi tudo. Foi o político mais importante da história do Brasil.