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Ex-funcionários da Love Story relembram histórias do lugar: 'Mulher pelada, chuva de dinheiro na pista etc.'

A Love Story abria as portas à meia-noite, e era o reduto daqueles que saíam tarde do trabalho ou que emendavam uma festa na outra

Folhapress

Publicado em 22/05/2021 às 18:52

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A "casa de todas as casas" teve a falência decretada em fevereiro deste ano. / Reprodução/Redes Sociais/Oba Oba

Wanderson Moraes, 48, colocou os pés na Love Story pela primeira vez aos 22 anos. A balada, que à época ficava na rua Major Sertório, região central de São Paulo, costumava reunir prostitutas, políticos, policiais, celebridades e subcelebridades.

Foi um primeiro dia assustador. "O lugar era muito escuro, estava apinhado de gente de tudo quanto é tipo." Ele diz que viu de tudo - cenas que jamais imaginou presenciar - em seus 25 anos à frente da chefia de segurança. 

"Na época tinha shows de strip, mulher pelada, gente armada, gente podre de rica", relembra. Gostou da adrenalina e continuou até o último dia da casa.

As coisas mudaram quando a casa trocou de endereço em 2000, para a rua Araújo, a dois quarteirões da Major Sertório. "A Love deixou de ser 'boate' e virou 'danceteria'", diz Moraes.

No vocabulário da noite, existia uma linha tênue entre "boate" e "danceteria" – a primeira, mais libertina, a segunda, mais recatada.

A Love Story abria as portas à meia-noite, e era o reduto daqueles que saíam tarde do trabalho ou que emendavam uma festa na outra, e fechava apenas quando o último cliente saía – daí o título "Casa de todas as casas".

Moraes, mais conhecido como Edy, acumulou as funções de advogado, promotor e juiz ao apartar brigas e solucionar todo tipo de conflito.

Foi desenvolvendo sua política de gestão de crise caso a caso. "Teve agressão física? Aí não tinha mais negociação e colocava as duas partes envolvidas para fora", explica. "Se a agressão fosse muito pesada, aí eu segurava e chamava a polícia."

Entre confusões e noites viradas, foi difícil manter relacionamentos. "Não é nada fácil ter família para quem tem esse horário doido", conta. Mas acabou tendo sete filhos e conheceu a companheira na própria Love Story. Silvane Moraes, 42, era uma frequentadora assídua nos anos 1990.

Em 2012, ela passou de frequentadora a funcionária da balada, trabalhando na divulgação. Com um carro personalizado, rodava outras casas noturnas de São Paulo chamando-os para o after na Love. Depois desse período, migrou para a chapelaria.

"Como era de graça [a chapelaria], o pessoal perdia a noção. Tinha mulher que vinha retirar a bolsa umas 20 vezes na noite", diz. Não faltaram brigas e acusações de roubo.

Enquanto Edy ficava na porta e Silvane na chapelaria, o DJ Juninho da Love, 47, comandava as picapes e ainda fazia bico de olheiro. Com uma visão privilegiada da pista, avisava a equipe de segurança quando começava algum tumulto.

Juninho também começou cedo na Love Story, em 1998, pouco depois de Edy. "Nos primeiros dias fiquei assustado com o tanto de gente, mas era uma adrenalina louca", diz. "Tinha todo tipo: coreanos de um lado, chineses de outro, playboy no meio. Cada clã no seu cantinho, e todo o mundo se respeitando."

No longo tempo de Love Story, viram celebridades despontarem. Mr. Catra, famoso por ser pai de 32 filhos e morto em 2018 vítima de câncer, foi um deles. Ainda um desconhecido rapper nos anos 1990, era um dos que marcavam presença na boate.

"Ele deu uma sumida e, quando voltou, já era MC", diz Edy. "Já famoso nos anos 2000, teve dia em que ele chegava, ficava no mezanino e fazia chuva de dinheiro na pista", diz Juninho.

Na visão do DJ, a decadência da Love começou quando os sócios teriam tentado elitizar o espaço. "Eles tentaram elitizar, e a Love não era desse jeito", diz Juninho. "Resolveram botar promoter, cerveja gourmet, e não tinha mais aquele tratamento exclusivo de antes."

Quem frequentava a Love Story diariamente e era simpático com os funcionários tinha tratamento privilegiado. Se passasse mal, o funcionário que tivesse maior proximidade cuidava dele. Em alguns casos, se necessário, levavam até o hospital. Se no dia estivesse com a grana curta, podia pagar depois. Essas regalias acabaram a partir de então.

Procurada, Michele Burigo, uma das sócias da casa, diz que as mudanças feitas por um dos sócios ajudaram a desfigurar a Love Story. A Folha procurou também João Tiago de Freitas, conhecido como Seu João, outro sócio, que não respondeu. A reportagem não conseguiu entrar em contato com os outros três sócios.

Edy, Juninho e Silvane lembram que o diferencial da Love Story era o relacionamento com o cliente. "Tínhamos uma clientela fiel, eles eram bem recebidos e fazíamos de tudo para tratá-los bem", diz Juninho. Mesmo em dia de baixo movimento, quem batia ponto na balada costumava deixar bastante dinheiro na casa.

Um dia, lembra o trio, apareceu um árabe com uma cara fechada. Ficou sentado nos sofás da pista a noite toda. Juninho tocava música eletrônica, e nada de o cliente dançar. Desceu para cumprimentá-lo e entender do que gostava, disse "salamaleico" (salaam aleikum, saudação em árabe usada por muçulmanos que significa "a paz esteja convosco") e recebeu uma nota de US$ 100.

Quando voltou para a cabine, colocou uma seleção de música árabe. "Ele olhou para cima, jogou um beijo pra gente e passou a frequentar a Love todos os dias até o fim."

Entre 2017 e 2018, foram demitidos cerca de 20 dos 70 funcionários com dez anos de casa, em média. Quem ficou da velha guarda foi colocado para escanteio, dizem os funcionários. "Desmancharam a equipe de segurança que tinha feito, fui tendo menos funções, me senti menosprezado e bateu o cansaço", diz Edy. "O bom é que me reinventei e fui fazer técnica de enfermagem."

A Love Story entrou com pedido de recuperação judicial em agosto de 2018, com uma dívida de quase R$ 1,7 milhão. A casa reconheceu que não conseguiria cumprir o plano e atribuiu à pandemia e à falta de perspectiva da retomada a impossibilidade de ressarcir credores. Teve a falência decretada em fevereiro deste ano.

O juiz Marcelo Barbosa Sacramone, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, afirmou que a "situação de absoluto descaso" durava mais de um ano e seis meses, e não era possível atribuir a falta de pagamentos apenas à pandemia, já que créditos trabalhistas deveriam ter sido pagos até novembro de 2019.

Na semana passada, foi iniciado um leilão dos bens da casa no valor de R$ 5,5 milhões.

A renda dos ex-funcionários despencou desde o fechamento, em março de 2020. Silvane deixou de trabalhar e cuida da casa e dos filhos, enquanto Edy faz bicos para pagar as contas. Com diploma de técnico de enfermagem, não conseguiu emprego pela idade e pela falta de experiência na área.

"Durante oito meses vivemos com parte do salário, já que eles aderiram ao programa de redução de jornada do governo", diz Silvane. A partir de dezembro, a Love Story parou de pagar aos funcionários.

Juninho da Love reabriu uma pastelaria em Guaianazes, na zona leste de São Paulo, e está terminando a graduação em direito.

"Tudo caiu, o padrão de vida de todo o mundo foi por água abaixo. Mas está bem mais tranquilo, dou mais atenção à família", diz.

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