A criançada caí nas águas escuras do canal do Porto. Entre navios, píeres e farelo de soja, meninos passam a maior parte do tempo / Nair Bueno/DL
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Seis mil moradores, entre eles 100 pescadores artesanais, deverão em breve ficar praticamente isolados no bairro Sítio Conceiçãozinha - um dos mais antigos e tradicionais de Guarujá, cujas primeiras oito famílias ergueram moradia em 1920, no lado esquerdo do Porto de Santos.
Isso porque a multinacional americana Cargill, cuja atividade é a produção e o processamento de alimentos, está batendo as últimas estacas para ampliar seu porto privado, fechando saída para o mar. Isso ocorrendo, além de perder o sustento, pescadores e moradores ficarão com uma única alternativa terrestre, uma via no meio de empresas do porto que dá acesso à Avenida Santos Dumont.
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A Cargill - segunda maior empresa do mundo de capital fechado, presente nos cinco continentes, empregando mais de 160 mil pessoas em 67 países, publica em seu site que tem o compromisso de nutrir e ajudar o mundo a prosperar, construindo negócios de sucesso e comunidades enriquecidas.
A Reportagem esteve dias atrás com moradores e pescadores. Lideranças elaboraram um manifesto contra a situação. Além de fechar a única saída para o mar, os bate-estacas usados para ampliar o porto também têm provocado rachaduras em casas do local.
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Diversas lideranças se reuniram antes do feriado de Carnaval na residência do morador e líder comunitário Newton Rafael Gonçalves, de 75 anos, nascido e criado no Sítio Conceiçãozinha. Newtinho ou Newton da Conceiçãozinha, como é conhecido, é dirigente da Central de Movimentos Populares (CMP), uma das entidades que assina o manifesto.
"A maioria dos moradores aqui possui a titularidade dos imóveis. O Sítio Conceiçãozinha cresceu, tem escola, posto médico, comércio em geral. Não podemos ter apenas uma saída. Isso é perigoso e desumano. Não houve qualquer audiência ou consulta pública sobre a obra. Por isso, exigimos a paralisação imediata dessa ampliação do porto", afirma.
O líder do lugar lembra que o Sítio foi terra Guarani e uma saída para o mar, além de ser uma alternativa, garante o sustento de pescadores. A Reportagem ouviu um dos pescadores. Jaime Serafim da Silva está desde 1977 no Conceiçãozinha e foi direto. "Sou pescador artesanal e tenho que morar aqui. Se fechar, como iremos sobreviver?", afirma.
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O advogado Benedito Roberto Barbosa, da Coordenação da CMP e do Movimento de Moradias de São Paulo, avalia como desastrosa a iniciativa da Cargill. "É uma vila de pescadores. Uma empresa bilionária tentando impedir o acesso de trabalhadores ao mar. Quinhentos metros não traz nenhum impacto a empresa e ao Porto de Santos, mas causa um impacto enorme à comunidade", finaliza.
COMUNIDADE.
Barracos erguidos sobre palafitas e casas de alvenaria de até dois pavimentos, bares, bazares, pizzaria, cabeleireiros, farmácia, escola, enfim. O Sítio Conceiçãozinha é um bairro consolidado, cadastrado na Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Sua área pertence à União e já conta com saneamento básico e urbanização.
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De um lado, a Cutrale tem seu principal terminal de embarque de suco de laranja do País. Do outro, a Cargill e a Louis Dreyfus possuem um imenso terminal, cujo píer de atracação fica em frente à comunidade, para embarque de commodities agrícolas, como soja, açúcar e milho.
A sua frente, diariamente, passam inúmeros navios de grande porte. Atrás, a única porta de entrada da comunidade é cortada pela ferrovia que abastece o porto. As águas que banham a comunidade por onde passam os navios é contaminada por metais pesados, como mercúrio, cobre, zinco, níquel e outros itens potencialmente cancerígenos.
Independente disso, a criançada da Conceiçãozinha caí nas águas escuras do canal do Porto de Santos. É ali, entre navios, píeres e farelo de soja, meninos passam a maior parte do tempo se refrescando, ou melhor, se arriscando.
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O Sítio Conceiçãozinha está nos planos de ampliação da atividade portuária há anos. O projeto vislumbra a construção de berços de atracação de navios, após a remoção das famílias. A retirada de todos os moradores já foi anunciada inúmeras vezes, mas a população resiste.
CARGILL.
O Terminal Exportador do Guarujá (TEG), que responde pela Cargill, confirma as obras, que na verdade são de adequação do sistema de amarração das embarcações em seu píer. Elas começaram em janeiro, atendem a uma solicitação da Capitania dos Portos e Santos Port Authority (SPA) e têm como objetivo ampliar a segurança das operações, conferindo mais estabilidade às embarcações nas manobras de atracação dos navios.
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"É importante ressaltar que as obras não eliminarão o acesso dos comunitários ao canal e conta com a anuência dos órgãos competentes para sua realização e, embora iniciativas desta natureza não demandem a realização de audiências públicas, o Terminal procurou as lideranças locais, com quem segue dialogando e que inclusive já visitaram o Terminal para conhecer o projeto e sanar eventuais dúvidas", finaliza nota da empresa.
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