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Avião fez pouso forçado no litoral de SP há 74 anos; tripulantes queriam ver jogo do Chile

Tripulantes acharam que estavam na Floresta Amazônica e sendo ajudados por indígenas; conheça a história

Márcio Ribeiro, de Peruíbe para o Diário do Litoral

Publicado em 10/10/2024 às 14:40

Atualizado em 10/10/2024 às 16:40

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O grupo precisou fazer um pouso forçado na Juréia, porém acreditaram estar na Floresta Amazônica e sendo ajudados por indígenas que na verdade eram os caiçaras decididos a levá-los até Peruíbe / Márcio Ribeiro

Você sabia que um avião fez um pouso forçado na Juréia em 1950 e que os tripulantes acharam que estavam na Floresta Amazônica sendo ajudados por indígenas? Pois é, essa história é real e ela só foi conhecida graças a Cláudia Cortinez, que veio conhecer Peruíbe de tanto ouvir o seu pai falar o nome da cidade.

O Avião onde estava o pai dela, que na época tinha 16 anos, saiu de Córdoba rumo ao Rio de Janeiro com mais dois tripulantes, o Sr. Carlos, pioneiro na aviação chilena, que fez o primeiro voo Califórnia-Santiago e Roberto Wood, pai do diretor de cinema Andrés Wood. 

Eles estavam dispostos a torcer pelo Chile, que jogaria contra a Inglaterra no Maracanã, em jogo válido pela Copa de 1950, mas um imprevisto fez com que eles vivessem uma aventura que jamais seria esquecida, cuja história seria repetida aos filhos e netos.

Eles tiveram que fazer um pouso forçado na Juréia, porém acreditaram estar na Floresta Amazônica e sendo ajudados por indígenas que na verdade eram os caiçaras decididos a levá-los até Peruíbe. E esse nome ficou na cabeça deles como se fosse uma salvação do infortúnio que viviam.

Claudia Cortinez procurou a Prefeitura de Peruíbe para conhecer a cidade e, recepcionada pelo Eduardo Ribas, atual Secretário de Meio Ambiente, ela deixou esse relato posto a seguir e escrito pelo pai dela em 1991,  a partir das memórias que ficaram vivas em sua cabeça. Traduzido do original em espanhol: "Me entrou a lembrança":

A história

"O que mais gosto quando penso nesse poema (poema no final da reportagem) é que a aventura original à qual se refere ocorreu em 1950, e que o poema nasceu enquanto eu estava no chuveiro (um lugar onde muitas vezes tive boas ideias), em cinco minutos de uma manhã de 1967 em minha casa em Valdívia. Dezessete anos decantando a experiência em fogo lento! E hoje, ao me lembrar dos fatos, já se passaram quarenta e um anos! Mas tudo continua firmemente registrado na minha memória.

Se fosse contar os detalhes da história que deu origem ao poema demoraria horas. É a história de uma viagem ao Brasil que fizemos em 1950 meu pai, um amigo do colégio, Roberto Wood e eu, no avião Navion do meu pai, para assistir ao campeonato mundial de futebol e, principalmente, para torcer pelo time do Chile. A viagem foi interrompida em Río Cuarto, na Argentina, onde, por causa do mau tempo, tivemos que esperar três ou quatro dias. Em função disso, chegaríamos mais ou menos em cima da hora para a abertura do torneio. De maneira que no último dia não levamos em consideração os informes meteorológicos, nem tomamos café e nos lançamos ao ar, ansiosos por chegar logo ao Rio."

O pouso forçado

"Erro fatal! O mau tempo - espessa neblina-  nos obrigava a voar bem baixo pela costa, com pouquíssima visibilidade. Havia um ponto em que devíamos deixar a costa e penetrar no continente para chegar a Santos. Era impossível saber com certeza onde estávamos. Meu pai decidiu aterrissar na praia e esperar ali até que o céu se desanuviasse para depois continuar a viagem. As praias nessa regiãoafirmou meu pai para tranquilizar-nossão suficientemente firmes para permitir aquela solução. Isto é verdade, mas tudo depende das marés, e não era assim na hora em que tentamos pousar. Embora não tenhamos sofrido um acidente grave, o avião, enquanto rodava na areia, foi arrastado pela água mar adentro, foi freando e finalmente, enterrou o nariz na espuma do mar."

A busca por ajuda

"Passado o susto, e já com os pés em terramelhor dizendo, na águacomecei a correr à procura de ajuda, mas sem nenhuma garantia de encontrar alguém. Estávamos na beira da imensa, misteriosa e selvagem selva amazônicaa mesma que engoliu os protagonistas de La Voráginee as únicas coisas que tínhamos visto do alto eram árvores, morros e rios. Depois de correr por uma meia hora tive a sorte de encontrar um grupo de índios pacíficos. Falavam um dialeto incompreensível para mim, mas era evidente que me acolhiam com o mesmo espírito amigável com que receberam Colombo anos antes. Gesticulando, consegui que me acompanhassem até o lugar do acidente.

Ali, nos ajudaram a tirar o avião da água e arrastá-lo até a margem oposta da praia. Era pouco depois do meio-dia e não tínhamos comido nada esse dia. Chovia forte e às três da tarde iria começar o campeonato de futebol no Rio."

A certeza de boas histórias

"Para Roberto e para mim estava começando uma aventura mágica, iniciática, que serviu para unir-nos como amigos ao longo de toda a nossa vida e para entreter os nossos filhos quando nos pedem histórias "cheias de perigo". Nosso momento preferido é lembrar-nos de meu pai, ainda meio tonto com o acontecido, pedindo que eu dissesse aos meus amigos índios que precisávamos de um táxi. Nunca vi o meu pai tão lastimavelmente fora da realidade. Não sabia onde estávamos, e não tenho certeza de que se lembrasse claramente de quem ele era. A única coisa clara em sua mente era que dali a três horas tínhamos que estar em nossos assentos no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro."

 A hospitalidade

"Os índios não sabiam o que estávamos fazendo ali e nem quem éramos, mas nos ofereceram a sua hospitalidade. Meu pai pensava que não tendo chegado o nosso avião ao anunciado lugar de destino, a Força Aérea do Brasil daria início às buscas, que rapidamente localizaria o avião na praia e nos transportaria em suas asas até os nossos assentos no Maracanã. Aceitamos vagamente a oferta de hospedagem, mas a casa oferecida era mais que rudimentar, um galpão de um compartimento só, no meio da floresta, escuro, malcheiroso e onde se amontoavam dezenas de pessoas. Fazer o quê? Nós éramos de certa forma e naquele momento por desgraça civilizados e como tal, esperávamos um mínimo de higiene, luz elétrica, água potável, enfim, toda essa gama de comodidades, invisíveis até o dia em que nos faltam."

"Piruíbi"

"Que outras alternativas tínhamos? No emaranhado de palavras incompreensíveis que ouvíamos dos nossos salvadores reconhecíamos apenas a constante repetição de certas sílabas, que não representavam nada em nossa mente: "Piruíbi". Pouco a pouco fomos descobrindo que tal palavra significava um povoado no meio da selva (que obviamente não aparecia nos nossos mapas) e que por ali passava, às vezes, um trem de carga com o qual a gente podia ir a Santos.

Até entendermos isto levou bastante tempo já que o dialeto dos nossos amigos estava bem longe do português e mais ainda do nosso espanhol."

Andando na selva

"Finalmente decidimos deixar o avião na praia, carregar o mínimo de bagagem (duas malinhas de mão) e empreender a marcha através da selva com destino a esse ignoto "Piruíbi", guiados por um par de nativos. Entendemos o plano de maneira bastante precária, mas ficou claro que o aceitávamos sem questionar pois não havia outra solução melhor.

Era uma completa aventura para os três turistas de terno e gravata, não apenas pelas dificuldades e perigos de atravessar a selva debaixo de chuva torrencial e sem estar preparados para ela mas porque não sabíamos nada ao certo. Os nativos pareciam incapazes de informar os dados que pedíamos: quantos quilômetros dali a "Piruíbi", quantas horas de caminhada, quantos habitantes no povoado, etc. Insistir em perguntar esses detalhes não era menos absurdo do que tentar pedir um táxi na selva."

Perrengues e chuva torrencial

"Empreendemos a caminhada, os índios carregando as nossas malinhas de couro e movendo-se com expedita desenvoltura e sábia confiança. Na selva era difícil distinguir as trilhas, certamente fruto do simples trânsito silencioso dos nativos ao longo dos anos. De repente, desembocávamos em algum rio. Ali havia alguma canoa amarrada à margem na qual montávamos e que nos ajudava a avançar pelo rio ou a cruzá-lo. Estavam certamente inundadas pela chuva que continuava caindo. Roberto e eu logo deixamos de considerar a água como inimiga, e a aceitamos do mesmo modo que o ar. Meu pai, embora estivesse tão ensopado quanto nós, ainda se aferrava ao seu guarda-chuva, já bastante arranhado pelos galhos, que lhe dificultava a passagem. Na canoa, a água que escorria do guarda-chuva desembocava diretamente no pescoço do Roberto, que aceitava o fato sem reclamar até que eu avisei o meu pai. Desculpou-se envergonhado e ali mesmo decidiu desprender-se de seu inútil objeto. Sem muito respeito pela ecologia, largou-o a navegar em um daqueles rios. Os índios remavam e de tempos em tempos nos pediam para fazer silêncio absoluto. Era quando nos rodeavam os crocodilos. O primeiro que vimos nos causou certo pavor, mas pouco a pouco fomos nos acostumando a ser escoltados por eles."

Fome

"Era impossível encontrar comida. Na praia tínhamos liquidado um pouco de queijo que levávamos no avião, mas com as horas passando e o esforço da acidentada marcha, a fome apertava cada vez mais.

Ó, ilustre Lazarillo de Tormes, com quanta simpatia lembrei-me de ti naquele momento! Umas duas vezes encontramos terrenos com plantação de bananas, mas, para nosso infortúnio, verdes. Só serviam para tornar mais aguda a ingrata sensação de estômago vazio."

A chegada

"Quero encurtar essa longa história, e deixo que o leitor imagine os demais detalhes. Havia anoitecido e embora não chovesse mais, a terra estava barrenta e a escuridão era um novo obstáculo. De repente, os guias pediram trégua. Isto nos espantou, pois nós, dada a ansiedade de voltarmos ao nosso mundo, mesmo que exaustos, não queríamos descansar. Os nativos não nos pareciam cansados. Não estavam. A trégua era para vestir uma roupa decente, uma calça e uma camisa (que apareceram como num passe de mágica). E tão súbita preocupação mundana era decorrente do fato de que estavam chegando à metrópole: "Piruíbi"! Ouvimos esse nome exótico, meio melífluo, meio musical, ao longo de todo o trajeto e a essa altura já era uma voz mágica, encantatória, que significava para nós algo assim como a Terra Prometida para os israelitas no deserto."

Enfim, "Piruíbi"

"Pois bem, perto da meia-noite adentramos na Esplêndida Cidade! O termo -  que tomo emprestado de Rimbaud - não é uma ironia referente a uma aldeota de casas simplórias sobre a areia, erguida precariamente em uma clareira na selva: representa exatamente a grandeza da ansiedade com que desejávamos encontrá-la. Ali vimos rostos estranhos e ouvimos mais desse dialeto que continuávamos sem entender. Soubemos que o trem para Santos aparecia apenas uma vez por semana para recolher a banana e que esse mesmo dia, pouco antes, já tinha passado."

O trem

"Mais uma semana estacionados em 'Piruíbi'! Não era possível! Como os dados não eram totalmente precisos, ou não queríamos aceitar que a má sorte continuava nos perseguindo, decidimos caminhar até a estação outra meia hora- com o que nos restava de forças, nem que fosse só para ver e tocar os trilhos de ferro que nos tirariam da selva selvaggia.

Essa meia hora não foi de caminhada: foi de corrida! Os robustos nativos na frente, carregando as maletas sobre as cabeças, depois eu e o Roberto, que éramos atléticos rapazes de dezesseis anos, e depois o meu pai, valente senhor de quarenta e três anos. Todos sadios, todos fortes, mas mesmo assim, à beira do esgotamento.

Ó deuses benévolos! Na minúscula estação dava para ver um trem prestes a sair. Estava carregado de bananas e não levava passageiros. No entanto, consentiram em dar-nos espaço no chão de um vagão abrindo um buraco entre as bananas. Viajamos ali toda essa longa noite, com o chiado dos ferros nas estações em que o trem parava para carregar a fruta. Deslocava-se nelas de trás para a frente e de frente para trás, enganchando novos vagões e interrompendo o nosso sono. Depois corria pela selva escuracom sua carga de milhões de bananas verdes e três chilenos maltrapilhos o frio penetrando pelas paredes de barrotes e chegando até os ossos através da roupa molhada e gelada."

Alívio

"Mesmo assim, nesses trechos dormíamos felizes, porque não sabíamos quanto tempo depois viria Santos. O nome da cidade não podia ser mais apropriado pois significava a fuga do Inferno e a proximidade do Reino Celestial. Era meia manhã e no Rio, às 3 dessa tarde, jogava Chile contra Inglaterra."

Em Santos

"Em Santos quisemos alugar um quarto em um hotel para limpar-nos e vestir-nos. Não nos permitiram. Éramos, a critério de qualquer porteiro, um trio de indesejáveis selvagens. Meu pai ligou para o consulado do Chile e com a ajuda deles conseguimos recuperar um aspecto decente em um hotel qualquer. Não havia passagens disponíveis no voo comercial para o Rio. Meu pai mexeu seus pauzinhos e, não sei como, conseguiu duas passagens: os assentos da tripulação. Meu pai e eu fomos neles. Roberto, menos interessado em futebol já que vinha conosco ao Brasil principalmente para visitar o pai dele, viajou de ônibus."

Maracanã

Chegamos ao Rio na hora do jogo, mas os nossos ingressos estavam em Copacabana, à nossa espera no hotel. Não dava tempo de ir buscá-los. Pegamos um táxi para ir ao estádio, na maior correria e ali, não sei com que outra manobra picaresca, coisa em que meu pai era perito, entramos ao estádio sem as entradas e ocupamos os nossos assentos vinte minutos depois do início do jogo. No final desse filme, Hollywood teria dado a vitória ao Chile. Na verdade, ganhou a Inglaterra de 2 x 0, mas ficamos convencidos de que tinha sido um desses típicos resultados injustos que, de acordo com os nossos compatriotas, prejudicavam eternamente os times chilenos de futebol".

(Julho 7, 1991.)

P.S. "Depois de escrever o texto anterior, por pura curiosidade, consultei um Atlas da Enciclopédia Britânica e ali, com grande surpresa, deparei-me com esse povoadozinho minúsculo, escrito Peruibe, no litoral brasileiro, um pouco ao sul de Santos".
(7.8.91)

Despedida

Claudia Cortinez visitou Peruíbe acompanhada do Guatemalteco, Carlos Vera Prado. Foi acompanhada pelo Secretário de Meio Ambiente, Eduardo Ribas que se prontificou a ajuda-los e também a mostrar o lugar que o seu pai tanto falara. Após conhecerem a região, os dois levaram presentes e souvenirs de Peruíbe, além do registro de imagens.

Agradecimentos

Essa publicação contou com a ajuda de Claudia Cortinez, Eduardo Ribas e da equipe do Editoria Livre / O Garoçá. A tradução dos textos é da Eugenia Flavian.

O POEMA

"PIRUÍBI"
"Veio-me a lembrança de quando não existias
Como um povoado perdido na selva, Piruíbi;
como um povoado adormecido,
como um povoado sem histórias,
sem crianças, Piruíbi.
Algum dia fui náufrago e na costa desolada
em sua linguagem livre, as aves diziam teu nome.
Sob o céu esverdeado, cada samambaia testemunhou
que em meus olhos brilhavam as luzes primitivas
de umas casas escuras que na clareira dormiam.
Não sou mais o mesmo, compreendo,
porque cheguei e fui embora
e Piruíbi é um povoado perdido em uma selva
mas um povoado encontrado
já é uma história para crianças.
Não garanto, ao narrá-la,
que as aves infalíveis ainda cantem o nome
do povoado profanado".

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