Cotidiano

Viadutos abandonados há 45 anos 'levitam' no meio das árvores do litoral de SP

Governo abandonou obras no Litoral Sul de SP, único trecho inexistente da BR-101, que começa no Rio Grande do Norte, atravessa 12 estados e vai até o Rio Grande do Sul

Nilson Regalado

Publicado em 16/02/2025 às 07:00

Atualizado em 17/02/2025 às 10:54

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Erguidas em concreto e abandonadas há décadas, cada uma tem mil metros quadrados / Renan Lousada/DL

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Há exatos 45 anos, nas ruas impregnadas de história de Iguape e no então jovem município de Peruíbe chegava ao fim mais uma temporada de verão. Os “paulistas” levavam areia, sal, sol e imagens na retina. Na bagagem, quem sabe, amores de praia que não sobem a Serra. Mas, naqueles dias um fantasma passou a assombrar praias desertas e paradisíacas no extremo sul do Litoral Paulista.

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Os ‘primos’ da Serra da Juréia diziam que aquele desassossego era obra do “corpo-seco”, o personagem da mitologia caiçara rejeitado por Deus e pelo diabo que sai para vagar nas noites sem lua. Mas, as orações ao Bom Jesus e a São Miguel Arcanjo, na Cachoeira do Guilherme, surtiram efeito.

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Daqueles dias, restaram recortes de jornais amarelados pelo tempo e memórias orais dos poucos caiçaras que ainda vivem. E o vestígio mais evidente daquele embate são duas pontes que ‘levitam’ entre árvores imensas, no meio da selva. Erguidas em concreto e abandonadas há décadas, cada uma tem mil metros quadrados.

As duas têm cerca de 100 metros de comprimento cada uma, por dez metros de largura, o que pressupõe que teriam duas faixas de rolamento. E defensas laterais também em concreto, sobre pilotis que projetam as pontes entre 15 e 20 metros acima do Rio Despraiado. Mas, as cabeceiras que ligariam essas estruturas à estrada nunca foram concluídas, criando um cenário surreal com os viadutos pairando no meio das árvores.

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Com o passar dos anos e a falta de uso, a Mata Atlântica acabou ‘engolindo’ as clareiras abertas para a construção das duas estruturas. A retomada do espaço pelas árvores vai, lentamente, ‘estrangulando’ o ferro e o concreto, que só podem ser vistos do chão ou através de raras imagens de satélite.

A primeira fica no meio da selva de árvores imensas, próxima a um pomar natural onde brotam bananeiras-de-macaco e lírios-do-brejo, à sombra de embaúbas, petisco apreciado pelos bichos-preguiça.

Sob a estrutura, que pesa centenas de toneladas, corre manso o Rio Despraiado, com suas águas cristalinas e pedras esculpidas pelo tempo.

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A única referência da região é o Bar do Compadre, cujo dono dorme nas tardes de semana por não ter a quem atender...

De lá são 22 quilômetros de estrada de barro até a pequena Vila de Três Barras, o ponto mais próximo do que costumamos chamar de civilização. Daí até o asfalto da Rodovia Padre Manuel da Nóbrega são mais dois quilômetros.

Essas pontes abandonadas fariam parte da BR-101, que corta 12 estados brasileiros.

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Viadutos estão abandonados em Peruíbe / Renan Lousada/DL
Viadutos estão abandonados em Peruíbe / Renan Lousada/DL
Reportagem esteve no local para contar a história dos viadutos  / Renan Lousada/DL
Reportagem esteve no local para contar a história dos viadutos / Renan Lousada/DL
A Mata Atlântica acabou 'engolindo' as clareiras abertas para a construção das duas estruturas / Renan Lousada/DL
A Mata Atlântica acabou 'engolindo' as clareiras abertas para a construção das duas estruturas / Renan Lousada/DL
A retomada do espaço pelas árvores vai, lentamente, 'estrangulando' o ferro e o concreto / Renan Lousada/DL
A retomada do espaço pelas árvores vai, lentamente, 'estrangulando' o ferro e o concreto / Renan Lousada/DL
A primeira fica no meio da selva de árvores imensas, próxima a um pomar natural / Renan Lousada/DL
A primeira fica no meio da selva de árvores imensas, próxima a um pomar natural / Renan Lousada/DL
A ponte mais distante fica um quilômetro para frente do Bar do Compadre, em direção ao mar / Renan Lousada/DL
A ponte mais distante fica um quilômetro para frente do Bar do Compadre, em direção ao mar / Renan Lousada/DL

Ponte decadente

De tanto esperar que o poder público desse qualquer uso à estrutura que fica no quintal do Bar do Compadre, os caiçaras se encarregaram de improvisar cabeceiras nas duas pontas da estrutura abandonada. Na empreitada foi preciso juntar toneladas de barro até que o traçado da Estrada do Despraiado alcançasse a altura das duas faixas de rolamento em concreto.

E essa intervenção facilitou a conexão com ‘os primos’ que moram mais perto das praias isoladas de Peruíbe e Iguape, onde o acesso é exclusivo de moradores e pesquisadores.

“Isso facilitou muito a nossa vida”, resume Anderson Apolinário, servidor público em Itanhaém, cuja família vive na Juréia há três gerações.

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Antes, a opção era atravessar o rio por uma pequena e decadente ponte pênsil, com piso em madeira que oferecia riscos iminentes aos usuários. Essa ligação serviu às comunidades do Vale do Despraiado por décadas até ser vencida pela falta de manutenção.

Óvnis na selva

Na prática, caiçaras e aventureiros cruzavam o rio por dentro d´água, desviando das pedras, o que tornava a travessia mais perigosa no verão, após as chuvas nas cabeceiras próximas ao Pico dos Itatins. Conhecido como Dedo de Deus Paulista, o Itatins é o ponto mais alto do Litoral Sul, com 1.333 metros de altitude.

Montanha lendária para os caiçaras, com histórias de bolas de fogo que saem do cume, ouro escondido em suas ravinas e folclores, o Pico só foi alcançado por montanhistas em 1953.

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Para os caiçaras, as tais bolas de fogo são o tucano-de-ouro, o ser mitológico que tudo observa e só aparece de sete em sete anos, com seu brilho intenso, abençoando com riqueza e felicidade a pessoa que presencia seu voo.

Para os ufólogos, o tucano-de-ouro nada mais é do que a confirmação do avistamento de objetos voadores não-identificados, cujas aparições têm inúmeros relatos na região. Referência geográfica, o Pico dos Itatins constitui a fronteira das cidades de Peruíbe, Iguape, Pedro de Toledo e Miracatu.

Dali é possível avistar a barra do Rio Ribeira e até a Ilha do Cardoso, no último grão de areia do Litoral Paulista.

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Segunda ponte

A ponte mais distante fica um quilômetro para frente do Bar do Compadre, em direção ao mar. E ela é ainda mais intrigante porque sequer foi construída sobre o Rio Despraiado. Ao contrário, essa segunda estrutura tangencia o caminho das águas, o que sugere que ficou incompleta e seria prolongada em um futuro que nunca chegou.

Mais alta que a primeira, ela tem 20 metros de altura e termina de maneira abrupta. Em uma de suas extremidades há um vão de 40 metros até o traçado original da Estrada do Despraiado.

Intransitável, esta sequer permitiu o improviso dos caiçaras, que ousaram fazer por conta própria as cabeceiras da outra ponte, empurrando e acumulando o barro até suas duas extremidades.

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Larga como a primeira, ela também pressupõe capacidade estrutural para tráfego pesado em duas mãos dada a imponência dos robustos pilotis que sustentam a estrutura de concreto da pista de rolamento.

Neste ponto, o tráfego de carros e motos sobre o Rio Despraiado é feito sobre uma estrutura estreita, que serviu como estrada de serviço, necessária ao transporte dos materiais utilizados na construção da ponte que liga o nada a lugar algum.

Em mais de uma hora transitando pela estrada de terra batida desde a Vila de Três Barras até o Vale do Despraiado, a reportagem do Diário do Litoral cruzou com apenas dois veículos. E com alguns cavalos.

Em outra reportagem, o Diário relembra que esses viadutos abandonados ligariam usinas atômicas que seriam construídas na Região.

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