24 de Setembro de 2024 • 22:30
Marlene Rodrigues Martinez trabalhou por 42 anos com aviação. Apesar de trabalhar em terra para uma companhia aérea, conta estar acostumada com os sons típicos de uma aeronave. E foi um barulho que ela conhecia bem, da turbina de um jato, que irrompeu a manhã chuvosa de quarta-feira da aposentada, no dia 13 de agosto de 2014.
O apartamento de Marlene, na Rua Vahia de Abreu, foi um dos atingidos na queda do avião Cessna, prefixo PR-AFA, que vitimou o então candidato à Presidência da República Eduardo Campos (PSB), além de outros quatro passageiros, piloto e copiloto.
“Aquele dia foi terrível. Acho que a guerra da Bósnia perdia para a gente aqui. Foi uma tragédia, mesmo! Eu estava na cozinha. Não sei se era luz, se era fogo. Tinha os bambus que dificultavam a visão. Só vi um clarão e eu falava ‘aqui não, aqui não’ porque eu vi o bicho acelerando e não dava tempo nem de fugir. Estava eu e o cachorro na cozinha. O avião caiu a metros de mim porque foi ao lado do muro da minha casa. Ainda dei um pulo na porta dos fundos para ver o que tinha acontecido. Não tinha noção. Quando vi tudo pegando fogo eu comecei a gritar para todo mundo sair”, conta Marlene.
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Desalojada do lar, do dia para noite, Marlene e as irmãs foram morar com uma sobrinha. Permaneceram lá até janeiro. “Fomos morar numa casa menor do que a nossa, com dois cachorros e mais duas pessoas. Voltamos em janeiro, no meio das obras, porque ninguém aguentava mais ficar fora. Os muros estavam levantados, mas não tinha nada terminado. O quintal ainda estava por fazer, a lavanderia não tinha sido refeita. Estava tudo em obras e com um cheiro muito forte. Durante muitos meses você não aguentava o cheiro”.
O apartamento, térreo, virou uma passagem para os órgãos que trabalhavam na investigação do acidente. A turbina do jato entrou no apartamento que fica em cima do de Marlene. Os bombeiros também passavam pelo local para combater o fogo. Tudo isso contribuiu para a destruição parcial da moradia, que havia sido reformada um ano antes.
“Não tive coragem de entrar aqui por três meses. Eu olhava pelo lado de fora e via muito entulho no prédio inteiro. Descreviam-me como estava o apartamento. Ele estava cheio de água porque precisaram apagar o fogo no apartamento de cima. Inundou meu apartamento. Água corria pelas paredes, fazia marola no chão”.
As perdas foram diversas. Desde máquina de lavar roupa até toalhas de mesa e banho. Para retornar ao lar foi preciso lavar colchões e o sofá, encharcados pela água que combateu o incêndio. Já alguns eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos tiveram seu tempo de uso reduzido.
“Não tenho dinheiro para repor tudo de uma vez. Sou aposentada, uma das minhas irmãs também e a outra não tem renda. Não é que vivamos mal, mas nosso dinheiro é limitado. Agora, com essa crise instalada, não tenho como. Estou pagando minhas dívidas de tudo que eu tive que comprar para ter o básico”.
Críticas
A aposentada não poupou críticas ao PSB. Para ela, o partido foi omisso em relação às vítimas de Santos e só se pronunciaram na época das eleições. “Você passar por aqui e não ter sua casa, dar trabalho para outros, etc. E esses poderosos do Recife não oferecerem absolutamente nada? Só vieram aqui antes das eleições. Márcio França ofereceu mundos e fundos, disse que o PSB não iria desamparar as famílias. Veio o Antônio Campos e disse que iria fazer tudo o possível. Isso tudo foi papo antes das eleições. Depois, nunca mais vi a cara e nem ouvi a voz dessa gente”.
Um grupo de moradores e comerciantes contratou um escritório de advocacia, de São Paulo, especializado em desastres aéreos. Enquanto o processo segue, Marlene questiona sobre a responsabilidade pela aeronave.
“Um avião que cruzou o Brasil de leste a oeste, norte a sul, e ninguém sabe quem é o dono? Todo muito tá tirando o corpo da história. Não é possível. Tem que ter um responsável”.
A empresa AF Andrade enviou para a Anac um documento, informando que tinha repassado o avião para o empresário pernambucano João Carlos Lyra Pessoa de Mello Filho. Ele seria proprietário da aeronave em conjunto com o também empresário do estado, Apolo Santana Vieira. Segundo o presidente do PSB, Roberto Amaral, eles teriam autorizado o uso do jato na campanha eleitoral de Campos.
De acordo com a aposentada, Lyra e Vieira já fizeram alguns acordos. Por contrato, as pessoas não podem falar sobre e nem revelar o acordo, sob pena de multa. Já Marlene, não aceitou qualquer tipo de acordo.
“Eu não quero acordo com essa gente. O João Carlos Lyra enviou aqui dois peritos para avaliar as perdas materiais do nosso apartamento. O perito avaliou em R$ 58 mil. Sabe o quanto ele me ofereceu? R$ 19 mil. Eu falei ‘acabou o papo’. Não quero contraproposta, não quero saber quem são essas pessoas. Não me interessa porque isso é gozação”.
“A minha esperança é que todo esse processo do avião está nas mãos do Ministério Público e da Polícia Federal. Eu sei que vai demorar. O pessoal faz tudo para retardar o processo. O tamanho não é como de uma Operação Lava Jato, mas envolve políticos, gente poderosa ligada à política. Quando mexe com essa gente... Essa gente é muito poderosa”.
Elogios à Prefeitura
Para a aposentada, a postura da Prefeitura de Santos é uma das poucas a receber elogios, assim como a Defesa Civil e os bombeiros. Segundo ela, a Administração Municipal ofereceu toda a estrutura que estava ao alcance.
“A Prefeitura foi nota 10. Deram-nos assistência jurídica e social. Montaram uma barraca, cadastraram todos os afetados e ligaram durante uns dois meses para nós. Meus remédios estavam na cozinha e queimaram todos. A Prefeitura mandou tudo para eu usar durante meses. Para eu e minhas irmãs. Fora a isenção de IPTU de três anos. A Prefeitura foi muito humana. Funcionou muito bem”.
Por fim, Marlene garante que não está traumatizada pelo acidente e que não irá desistir de lutar pelo direito a uma indenização. “Se me perguntar se estou traumatizada, respondo que não. É uma coisa que você não esquece. Mas, enfim, você tem que tocar a vida. Nós estamos vivos e não adianta chorar sobre o leite derramado. Agora, como eu posso fazer acordo com um cara (João Carlos Lyra) que quer que a gente abra mão dos danos morais? Eu não posso abrir mão. Se ele tivesse sido um cara decente, mas ele não ofereceu nada. A gente não vai desistir”.
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