Cotidiano

Torturador que morou no litoral de SP morre sem pagar por crimes durante a ditadura

David dos Santos Araújo, o Capitão Lisboa, que por muitos anos morou em Itanhaém, sem ser reconhecido e sem pagar pelas inúmeras torturas que impôs

Pedro Henrique Fonseca

Publicado em 30/09/2024 às 07:00

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David dos Santos Araújo, o Capitão Lisboa, atuou com Ustra no Doi-Codi durante a ditadura militar / Reprodução

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Um episódio ocorrido este mês mostra que a Baixada Santista foi uma espécie de refúgio de torturadores. Com o nome também na lista do Ministério Público Federal (MPF), morreu, este mês, aos 86 anos, o delegado da Polícia Civil de São Paulo, David dos Santos Araújo, o Capitão Lisboa, que por muitos anos morou em Itanhaém (SP), sem ser reconhecido e sem pagar pelas inúmeras torturas que impôs aos opositores da Ditadura Militar que durou 21 anos do Brasil.   

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A Ditadura brasileira contabilizou mais de 400 (434) mortos e desaparecidos e cerca de dois mil que sofreram nas mãos de torturadores e agentes do Estado, grande parte sem ser responsabilizados, gozando de uma velhice discreta e tranquila.     

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Capitão Lisboa era uma dessas pessoas e do mesmo ‘time de homens considerados de bem e tementes a Deus, como o capitão do Exército Ênio Pimentel da Silveira, conhecido como Doutor Ney – um dos maiores torturadores dos quadros da repressão, ao lado do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Doutor Ney suicidou-se na Fortaleza do Itaipú, em Praia Grande, com três tiros no peito, mas ainda tem o quadro com seu retrato na unidade, como um herói. A história dele foi publicada na última segunda-feira (23) pelo Diário.         

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O Diário relembra esses personagens da história sombria do País porque o MPF requisitou que a Justiça de São Paulo (SP) declare a responsabilidade civil de 42 ex-agentes da Ditadura Militar por ligação com a morte ou o desaparecimento forçado de opositores do regime. Capitão Lisboa está na lista, assim como o Doutor Ney.

A informação da morte de Lisboa, ocorrida no dia 11 de setembro, foi obtida pelo jornalista Fausto Macedo (Estadão) e divulgada posteriormente por Moacyr Oliveira Filho no portal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). “O delegado estava vivendo em Itanhaém”, indica Oliveira, diretor de jornalismo da ABI.

Nas dependências do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operação de Defesa Interna (DOI-Codi), local de práticas clandestinas de torturas, em São Paulo, Lisboa era subordinado a Ustra, primeiro militar condenado pela Justiça pela prática de tortura, em 2008. Pelos serviços prestados, o delegado recebeu a Medalha do Pacificador em 1981.

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O relatório da Comissão Nacional da Verdade registra que o Capitão Lisboa atuou de abril a outubro de 1971 no DOI-Codi, onde praticou crimes de tortura, estupro, execução e desaparecimento forçado. Em depoimento à Comissão, em 2013, o policial negou as acusações.

Nas denúncias ao delegado, constam as mortes de Aylton Adalberto Mortati e Joaquim Alencar de Seixas. Também é registrada a tortura ao filho de Joaquim Alencar, Ivan Seixas, à época com 16 anos de idade, e a mais três membros de sua família, além de uma quinta vítima.

Em 2010, ele foi processado pelo Ministério Público Federal (MPF) pelos atos de violência, e em 2023 foi condenado, ao lado de outros dois policiais, a pagar R$ 1 milhão por crimes na ditadura.

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O TRF-3 apontou que os delegados aposentados Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araújo e Dirceu Gravina (falecido em agosto do ano passado) causaram danos à sociedade ao participar da tortura e morte de 25 pessoas.

A morte do delegado aconteceu duas semanas após a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Instituída em 1995, a comissão analisou cerca de 300 casos de abusos e violência do período militar, reconhecendo mortes e promovendo o pagamento de indenizações às famílias das vítimas. A CEMDP havia sido interrompida em 2022 pelo então presidente Jair Bolsonaro – que, em diversas ocasiões, homenageou Ustra.

Ainda dava comendas

Em São Paulo, o Capitão Lisboa era também conhecido como Comendador Grã-Cruz Professor e Doutor Dom David dos Santos Araújo, conforme confirmado pelo Jornal Flit Paralisante. Ele era integrante Sociedade Brasileira de Heráldica e Humanística Ecológica, Medalhística e Educacional.

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Sua proximidade com Itanhaém era tão grande que chegou a conceder, no Salão Branco do Círculo Militar de São Paulo, ao então prefeito de Itanhaém, João Carlos Forssell (PSDB), o título de Comendador da Ordem do Mérito Cívico e Cultural, por suas ações a serviço da comunidade e em defesa das legítimas tradições.

Para receber a condecoração, Forssell passou por um rigoroso processo, após ser indicado pelo Capitão Lisboa. A entidade é responsável por monitorar importantes organismos que atuam por todo o mundo, em defesa da paz duradoura, da sustentabilidade e da consciência ética no planeta.

Tem como objetivo, dentre muitas outras atividades culturais, educacionais, filantrópicas, cívicas e honoríficas, orientar organizações militares e civis na elaboração de suas bandeiras, uniformes, símbolos, escudos e brasões.

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Doutor Ney

O Doutor Ney comandou a Fortaleza do Itaipú, como coronel Ênio Pimentel da Silveira, por pouco tempo - entre 13 de fevereiro de 1985 a 23 de maio de 1986 (dia que se matou). Nos 42 nomes, ainda estão 26 ex-integrantes do DOI-Codi do II Exército, em São Paulo. Também são alvos dos pedidos 16 ex-servidores do Instituto Médico Legal (IML) paulista.

A ação civil pública do MPF tem o objetivo de promover, além da responsabilização pessoal dos ex-agentes, uma série de medidas de reparação, preservação da memória e esclarecimento da verdade sobre o período da Ditadura.

A declaração de responsabilidade representaria o reconhecimento jurídico de que os réus tiveram participação em atos de sequestro, tortura, assassinato, desaparecimento forçado e ocultação das circunstâncias da morte de 19 militantes políticos.

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O MPF pede que todos sejam condenados a ressarcir os danos que as práticas ilegais causaram à sociedade e as indenizações que o Estado Brasileiro já pagou às famílias das vítimas. O total passa de R$ 2,1 milhões, em valores sem atualização monetária. No caso daqueles já falecidos, a reparação financeira deve ser cumprida por seus herdeiros.

A ação pede que os réus vivos percam eventuais funções ou cargos públicos ocupados atualmente e tenham suas aposentadorias canceladas. A União e o Governo de São Paulo também são réus na ação. O MPF pede que a justiça declare a omissão de ambos na tarefa de investigar e responsabilizar ex-agentes do sistema de repressão da ditadura militar – como o caso do Doutor Ney, que está homenageado em Praia Grande.   

Entre as medidas determinadas está a abertura de arquivos e acervos sobre o período da ditadura e criar espaços de memória que tratem das violações de direitos ocorridas no período.

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Além de Ênio Pimentel da Silveira e David dos Santos Araújo, estão na lista Carlos Alberto Brilhante Ustra, Sérgio Paranhos Fleury, Adyr Fiuza Castro, Alcides Cintra Bueno Filho, Altair Casadei, André Leite Pereira Filho, Antônio Cúrcio Neto, Antônio Vilela, Aparecido Laertes Calandra, Audir Santos Maciel, Cyrino Francisco de Paula Filho, Dirceu Gravina, Durval Ayrton Moura de Araújo, Edsel Magnoti, Félix Freire Dias, Gabriel Antônio Duarte Ribeiro, Jair Romeu, José Barros Paes, José Brant Teixeira, Lourival Gaeta, Luiz Martins de Miranda Filho, Paulo Malhães, Pedro Antonio Mira Grancieri e Walter Lang.

Já os nomes vinculados ao IML de São Paulo são Abeylard de Queiroz Orsini, Antonio Valentini, Arildo de Toledo Viana, Armando Cânger Rodrigues, Arnaldo Siqueira, Carlos Setembrino da Silveira, Ernesto Eleutério, Fernando Guimarães de Cerqueira Lima, Isaac Abramovitch, João Grigorian, João Pagenotto, José Henrique da Fonseca, José Manella Netto, Mário Nelson Matte, Octavio D’Andrea e Orlando José Bastos Brandão. De acordo com o MPF, todos foram responsáveis por atos que buscaram dissimular as razões das mortes de opositores da ditadura.

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