Cotidiano

‘Temos que repensar a cultura que estamos fomentando’

Com trabalhos desenvolvidos junto a crianças e adolescentes, a doutora Maria Izabel Calil Stamato analisa a questão da erotização infantil no funk

Publicado em 07/06/2015 às 11:43

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MC Melody, MC Pikachu, MC Brinquedo e MC Pedrinho. Crianças e adolescentes, eles fazem parte do movimento do funk ousadia. O ritmo é marcado pelas letras, com conotações sexuais e trocadilhos, e escancararam a questão da sexualização infantil.

O tema chamou a atenção do Ministério Público de São Paulo, que passou a investigar a presença de forte conteúdo erótico e apelos sexuais nos trabalhos musicais de crianças e adolescentes.

Em uma luta contra a erotização infantil, o MP conseguiu obter uma liminar para proibir shows do MC Pedrinho, de 13 anos, em todo o País. Quem descumprir terá de pagar multa de R$ 50.000 por apresentação, sem prejuízo das multas aplicadas nas ações a serem propostas nas localidades onde ocorrerem apresentações.

Neste Papo de Domingo, a professora doutora Maria Izabel Calil Stamato, coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Católica de Santos (UniSantos), que possui experiência e trabalhos desenvolvidos entre jovens, analisou o tema.

Com letras eróticas, MC Pedrinho foi proibido de cantar por liminar do Ministério Público (Foto: Divulgação)

Diário do Litoral - Como você enxerga a questão da erotização infantil no funk?

Dra. Maria Izabel - Nós estamos vivendo um momento em que há a adultização da criança em todos os setores. Ela assume uma face mais perversa nesse processo de erotização porque acaba antecipando uma visão do ser humano enquanto objeto sexual. Desde pequeno, o homem não tem sido olhado por viver a infância, mas o que será importante dar a essa criança para que ela possa se tornar um adulto produtivo, inserido na sociedade. Isso faz com que a gente deixe de olhar a criança com as suas características, as suas necessidades próprias e passe a ver só o que ela precisa para se tornar um adulto. Nosso olhar acaba ficando sempre à frente, fora do momento da fase de desenvolvimento que ela que se encontra. O processo de erotização se torna mais perverso porque a criança fica mais exposta, e com o funk, muito mais estimulada. Como se para ela chamar a atenção, ter afeto e carinho precisasse dessa conotação sexual.

DL - Que reflexos essa exposição pode gerar na formação das crianças?

Dra. Maria Izabel - Nós formamos nossa subjetividade, que na verdade é aquilo que a gente é enquanto pessoa, ao longo do desenvolvimento. Isso é um processo, embora tenham idades mais importantes. Um fator determinante são as interações que estabelecemos com as pessoas, com outras crianças e adultos. Esse processo de exposição da criança às questões da sexualidade gera um padrão de relacionamento onde a criança está sempre negociando para conseguir algo e nesse negociar entra o sexo. Isso favorece para que ela seja usada, manipulada. Favorece o que chamamos, na psicologia, de coisificação. Você transforma a outra pessoa em um objeto para que possa utilizar ao bel-prazer. A erotização favorece o processo de coisificação tanto para a pessoa se tornar vulnerável, ser manipulada e seduzida, como de se tornar um agressor, alguém que manipula o outro. É um processo extremamente prejudicial. Acaba havendo uma substituição. Invés do afeto é o sexo. Para poder ser valorizado, reconhecido na sociedade, o sexo entra no meio das relações. Isso trouxe consequências sérias. Temos, por exemplo, aumento de AIDS entre a juventude, um número significativo de adolescentes que engravidam. Acho que vem tudo junto nesse processo. Muitas mães engravidam e abandonam os filhos, até por conta de drogas. Isso faz com que a vida humana perca a dignidade, o valor.

DL - Existem culpados por essa situação?

Dra. Maria Izabel - Todo mundo tem uma parcela de responsabilidade nesse processo. Somos adultos e criamos um mundo para essa criança. O que está sendo oferecido a ela é oferecido por nós. É a família, a escola, a mídia. Mas, principalmente, é a cultura que predomina. Ela que dá a direção das ações da família, com seus valores, como também a mídia, a escola. Temos que repensar a cultura que estamos fomentando. Uma cultura que tem a ver até com consumismo. Hoje, é como se consumíssemos as pessoas. Você é útil para mim, eu tenho um relacionamento com você. Quando deixa de ser útil, não tem mais relacionamento. É uma visão utilitarista e consumista que está predominando nas relações, as tornando muito mecânicas, desprovidas de afeto e temos visto o que isso tem gerado na sociedade. É um distanciamento das pessoas e também o uso das pessoas, seja sexual, para trabalho. Na base do interesse. Deixamos de ser importantes pelo que somos para sermos importantes pelo que temos.

DL - Hoje o funk está muito popularizado. O conteúdo é de fácil acesso. Como os pais devem agir neste tipo de situação?

Dra. Maria Izabel - Essa é uma questão bastante complexa. Os pais policiarem o acesso da criança ao computador ou a mídia é muito difícil porque estão presentes em todos os lugares e não há o controle total dos filhos. O mais importante é os pais estarem próximos e atentos aos filhos. É necessário perceber o que os filhos assistem e conversarem sobre isso. Não adianta impedir de assistir. O que você vai fazer quando sair de casa? Você pode controlar a TV paga, mas outros canais você não controla. E se ele for na casa de alguém? Você também não tem esse controle. É preciso estabelecer um patamar de relação que mostre que a criança é importante e dar uma base de relação afetiva. É necessário conversar. Elas repetem aquelas letras de música horríveis, mas é preciso falar sobre esse conteúdo e não só proibir. Às vezes, ela nem sabe o que está cantando. Precisa explicar o que as letras querem dizer. Desenvolver uma literatura crítica da criança. Tanto a família quanto a escola. Não adianta só proibir. O proibicionismo não rende aquilo que gostaríamos que rendesse. Ele não funciona.

Casos como da MC Melody, de 8 anos, chamaram a atenção das autoridades (Foto: Divulgação)

DL - O proibicionismo pode acabar estimulando a criança a ir atrás do que não pode?

Dra. Maria Izabel - Tudo que é proibido acaba se tornando mais interessante. Já que é proibido eu vou querer fazer. Todo mundo escuta funk, quer ir em baile, por que eu não posso ir? Escutar? Cantar? Essa questão de proibir gera curiosidade, desejo. Mais importante do que proibir é conscientizar. É um trabalho de formiguinha. Não é fácil. Mas é um trabalho de resgate das relações humanas.

DL - Como você enxerga a ação do Ministério Público, que vetou shows do MC Pedrinho, por exemplo. É um tipo de ação é válida?

Dra. Maria Izabel - Quando é uma ação que chama a atenção da população, ela é válida. Existe uma preocupação do Ministério Público com o coletivo que é o quanto esse tipo de show gera problema, traz dificuldades, conflitos. Esses shows estão, de alguma forma, ampliando comportamentos latentes, mas que a música amplia. É um lado positivo. Por outro lado, se não tivermos uma atitude de mudança dessa cultura, de reflexão, o que irá acontecer? Irá transformar os caras em heróis porque eles se tornam vítimas e todos aqueles que não gostam de ser proibidos irão se identificar. Pode ter um efeito contrário. Por ser uma questão complexa, ela exige que se tenham ações em vários níveis. Eu proíbo, mas ofereço algum outro tipo de cultura para a juventude no lugar? Será que o funk não ocupa um vazio até de espaço de produção cultural que essa juventude tem? Será que o funk não pode ser usado como crítica as questões sociais e não só como apologia às drogas, crime e sexo?  Também não devemos negar um tipo de cultura que tem se ampliado na sociedade. Porém, não podemos achar que está tudo bem. É essa a dificuldade e a mídia tem um papel muito importante de ajudar nessa leitura crítica, nessa visão mais aberta de vários ângulos da sociedade.

DL- Há também uma inversão de valores nessa questão. Crianças estão se tornando provedores da casa. É uma carga emocional e uma responsabilidade excessiva para alguém tão jovem?

Dra. Maria Izabel - Com certeza. Faz parte da questão dos valores que estão predominando. É interessante porque, por exemplo, se ele estivesse na rua tomando conta de carro ou até trabalhando em um supermercado, iriam dizer que era exploração do trabalho infantil. Mas como ele tem sucesso comercial, não se vê isso como exploração, mas é. Ele vai ser provedor da casa e mais uma vez essa proibição vai tornar ele uma vítima. Ele já é vítima do sistema que faz com que uma criança se torne provedora da casa, quando o papel seria o contrário. Uma questão interessante é que, quando ela se torna provedora, ela se torna uma figura de autoridade em casa, mais que os pais. Porque se ela que está sustentando a casa, as ordens vão vir dela. Você tem mais uma problemática que agrava esse processo.

DL - O que mais pode ser feito para mudar esse cenário?

Dra. Maria Izabel - Precisamos oferecer uma cultura positiva. Eu trabalho muito com jovens carentes. Eles possuem criatividade, energia, vontade de fazer diferença e conquistar um lugar ao sol. Mas nossas políticas públicas são vazias. Não se tem uma política para a juventude. Esse vazio é preenchido pelo funk, mas também acaba sendo preenchido pela criminalidade e pelo tráfico de drogas. Queremos eliminar as feridas sociais, mas não trabalhamos na causa. Eu tiro isso, mas tenho que oferecer algo de positivo. Espaço para eles produzirem, praticarem esportes, dar vazão à criatividade. Como adultos, temos que oferecer isso e acabamos não oferecendo.

 

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