Cotidiano

Surfistas, estudantes e ecologistas impediram usina nuclear no litoral de SP; entenda

A partir do momento em que os boatos se transformaram em realidade, a reação da população foi imediata

Nilson Regalado

Publicado em 16/02/2025 às 08:10

Atualizado em 17/02/2025 às 10:48

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Entre o fim da década de 1970 e o início da de 1980, o litoral de São Paulo quase 'ganhou' duas usinas nucleares / Divulgação/PMP

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Entre o fim da década de 1970 e o início da de 1980, o litoral de São Paulo quase 'ganhou' duas usinas nucleares. A partir do momento em que os boatos se transformaram em realidade, a reação da população de Peruíbe, de Iguape e de outras cidades da Baixada Santista e do Vale do Ribeira foi imediata. 

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Dois viadutos abandonados ligariam usinas atômicas que seriam construídas naquela região. E os primeiros protestos partiram de surfistas e estudantes, que passaram a pichar os muros de Peruíbe com frases como “Feijão sim, usina não”, “Peruíbe, cidade da morte” e “Maluf, usina não!”. 

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Rapidamente, essas pichações se espalharam por cidades do Litoral e do Ribeira.

Com pretensões de se tornar presidente da República, Maluf determinou que os funcionários da Cesp montassem acampamento na região em dezembro de 1979. Até janeiro de 1980, toda a área da primeira usina em solo caiçara já estava mapeada.

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A previsão era que a obra começaria até meados de 1982, sobre cemitérios ancestrais, anteriores à invasão da Pindorama (Brasil) pelos europeus, e sobre trechos do Caminho do Telégrafo, construído a mando do imperador Pedro I às margens de praias paradisíacas e desertas.

Preocupados com o risco iminente de despejo de suas casas, moradores tradicionais da Barra do Una bloquearam o acesso a área a ser desapropriada no dia 9 de fevereiro de 1981. Nove dias depois, o chefe da Assessoria de Comunicação Social Nuclebras, Cezarion Praxedes, apareceu para uma reunião com a população de Una.

“Homens, mulheres e crianças se comprimiam no espaço do prédio, pequeno em relação ao número de moradores. Alguns dormiam no chão, em colchões improvisados, vindos de muito longe. Era gente de Paranapuã, Carambori, Juquiazinho, Praia Verde e Barro Branco em Peruíbe ou quem sabe de terreno depois da Barra do Una, limite do município com Iguape”, relatava novamente o Cidade de Santos.

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No Carnaval, policiais militares impediram o desfile de um bloco de protesto pelas ruas de Peruíbe. Eram ao menos 220 pessoas com cartazes contrários à usina. Nas ruas e praias, políticos se mobilizavam.

Em Itanhaém, o lendário Ernesto Zwarg (1925/2009) fundava as bases de um movimento que, décadas depois, viria a ser conhecido mundialmente como ambientalismo. E municiava a Imprensa regional, estadual e nacional com informações.

Em Santos, sindicalistas e representantes da Juventude Democrática de Santos e do Centro dos Estudantes se reuniam na Praça Mauá. Em São Paulo cientistas ligados Universidade de São Paulo se mobilizaram contra o empreendimento.

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E todos eram “fichados” secretamente pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), a polícia política da ditadura militar que espionava, reprimia, prendia, torturava e matava adversários do regime, chamados pejorativamente de “subversivos”. O do DOPS em Santos chegou a elaborar um dossiê intitulado “Movimento contra instalação de Usinas Nucleares”.

Programa nuclear brasileiro naufragou junto com ditadura militar

A Nuclebras, que seria responsável pela construção das usinas atômicas em Peruíbe/Iguape foi extinta em 1989, depois de construir as centrais nucleares de Angra 1 e 2, no Complexo Almirante Alberto Álvaro. 

As duas unidades estão localizadas na Praia de Itaorna, em Angra dos Reis, no litoral sul do Rio de Janeiro. Construídas às margens da BR-101, Angra 1 e 2 respondem por apenas 3% da energia elétrica consumida no Brasil.

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As obras da primeira unidade começaram em 1971 e foram cercadas por problemas técnicos. A operação comercial de Angra 1 só foi autorizada em dezembro de 1984. Em pelo menos um episódio, em setembro de 2022, água radioativa foi despejada diretamente no mar, provocando uma multa de R$ 2 milhões à atual operadora da usina, a Eletronuclear.

Angra 2 só foi operar em 2001, quase 25 anos após o início da construção. E passou a utilizar tecnologia alemã, depois do litígio da Nuclebras com a fornecedora norte-americana de reatores responsável pelos equipamentos de Angra 1.

E Angra 3 segue com obras inacabadas. Os trabalhos começaram em 1986 e só devem estar concluídos em 2027. Atualmente, há perto de 450 usinas nucleares em operação no mundo.

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Projetos queriam transformar praias paradisíacas da Juréia em resorts de luxo

Quase cinco décadas depois da tentativa frustrada de construir as duas usinas nucleares na Juréia, é difícil prever o que teria acontecido com o Litoral Sul. Diretor de Cultura do Instituto Ernesto Zwarg, o professor de História Pedro Delazari lembra que antes mesmo das discussões acerca das usinas, a região já era da especulação imobiliária. 

Segundo Delazari, praias paradisíacas e secretas como Barra do Una e Rio Verde poderiam ter virado resorts de luxo, com a expulsão de caiçaras para as periferias das cidades.

“É difícil saber o que aconteceria na região porque tudo foi feito dentro de uma ditadura, sem uma projeção para o futuro e sem discussão com a comunidade”, reflete Delazari.

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Mas, o professor ressalta que “por linhas tortas, essa tentativa de construção das usinas incentivou uma mobilização popular que levou ao decreto de criação da Juréia”.

O diretor do Instituto Ernesto Zwarg cita ainda os outros riscos a que a região estava sujeita: “Sem esse decreto é muito difícil saber o que seria lá porque, independente da usina, ali também tinha projetos de construção de resorts, muito provavelmente seria uma área explorada turisticamente em praias como a do Rio Verde, da Barra do Una”.

“O que dá para ter certeza é que esse remanescente de Mata Atlântica bem preservado, com a biodiversidade preservada que é hoje, de fato não existiria mais” completa Delazari.

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