Cotidiano
Prefeitura e o Estado optaram por consolidar a ocupação do mangue ao invés de recuperá-lo para que cumpra sua função de contenção das enchentes e de berçário natural
Santos tem 150 mil metros quadrados de área construída e dotada de toda infraestrutura abandonados no Centro / Renan Lousada/DL
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Cada palafita de alvenaria que o Governo do Estado e a Prefeitura vão construir no Dique da Vila Gilda vai custar, em média, R$ 430 mil. Assim, o metro quadrado (m²) em cada um dos 60 imóveis sobre o mangue custará R$ 8,6 mil. E esse valor é dez vezes maior do que o custo estimado para readequar o m² dos prédios comerciais ociosos do Centro e torná-los habitáveis.
Ou seja, a Prefeitura e o Estado optaram por consolidar a ocupação do mangue ao invés de recuperá-lo para que cumpra sua função de contenção das enchentes e de berçário natural para peixes e crustáceos.
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Enquanto isso, 150 mil metros quadrados de área construída e dotada de toda infraestrutura estão abandonados na região central. E o custo estimado para readequar os prédios comerciais para uso residencial seria de R$ 800,00 por m². Os cálculos são do arquiteto e urbanista André Gonçalves Fernandes e o déficit atual é 30 mil moradias em Santos.
Morador do Valongo e com décadas de experiência no restauro de edifícios antigos, Fernandes traduziu em números esse 'deserto' chamado Centro de Santos depois de percorrer à pé toda a extensão das ruas General Câmara, João Pessoa, Amador Bueno e suas transversais.
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O trecho tem 46 ruas em apenas um quilômetro quadrado, mas é maior que a área do Vaticano. E abriga, segundo as planilhas do arquiteto, 360 imóveis comerciais vazios. Destes, ao menos 200 prédios poderiam ser transformados em habitações populares.
O problema é que, segundo Fernandes, "a legislação municipal é um entrave" para a readequação dos imóveis decadentes do Centro, do Valongo, do Bairro Chinês e do Paquetá para o uso residencial.
Enquanto os prédios antigos permanecem fechados, a Prefeitura optou por construir habitações em alvenaria no mangue da Zona Noroeste. "Santos está perdendo uma chance histórica de recuperar o Centro e resolver grande parte do problema habitacional do Município com essa verba", resume o arquiteto e urbanista.
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No total, o futuro conjunto habitacional, batizado com o pomposo nome de Parque Palafitas, vai custar R$ 26 milhões aos cofres da Prefeitura e do Estado, incluindo as fundações e as infraestruturas de água, esgoto e iluminação, além da construção de sete salas comerciais, de um espaço para a associação de moradores e de dois píeres para embarcações.
Descontados todos esses itens, o m² de habitação sobre o mangue ainda custaria R$ 4,2 mil, ou seja, cinco vezes o valor necessário para readequar os prédios decadentes do Centro, que já dispõem de infraestrutura de água, esgotos, iluminação, asfalto, saúde, educação e segurança.
No vácuo do poder público, o arquiteto e urbanista afirma que proprietários que vêm readaptando antigos prédios comerciais para transformá-los em moradias, "à revelia da Prefeitura".
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Esse é o caso de um empresário instalado no Valongo, que passou a reciclar imóveis no Centro para abrigar seus funcionários. Muitos moravam na Área Continental de São Vicente e demoravam duas horas no ônibus diariamente.
"Agora, eles almoçam com a família, chegam descansados no trabalho e estão mais felizes e produtivos", revela Fernandes. O arquiteto e urbanista estima que 600 pessoas já vivem nesses imóveis que estavam abandonados e foram adaptados de maneira informal.
Fernandes explica que cada metro quadrado de rua com toda infraestrutura instalada custa R$ 70 mil: "É uma área caríssima e ociosa, com alto custo de manutenção para os proprietários por falta de uso". Sem uso, a deterioração dos imóveis é acelerada, o que aumenta o risco de desabamentos.
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Cálculos da Rede BR Cidades, que reúne engenheiros, arquitetos, urbanistas, advogados e ambientalistas apontam que 30 mil famílias não têm um teto adequado em Santos. E isso representa perto de 25% da população santista vivendo em imóveis insalubres, como os cortiços do Paquetá; ou em áreas inseguras, como as encostas dos morros; além de famílias que pagam aluguel ou jovens casais que ainda vivem com os pais.
Essa conta inclui também os moradores da maior favela em palafitas do Brasil, o Dique da Vila Gilda.
E a situação é ainda mais crítica porque a Prefeitura não dispõe de uma secretaria dedicada exclusivamente ao o setor. "A ausência de uma política habitacional eficiente, voltada para quem realmente precisa, reflete um modelo de gestão que privilegia interesses privados em detrimento do bem-estar coletivo", protesta a advogada Gabriela Ortega, que integra a Rede BR Cidades.
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"Em uma cidade que se orgulha de ser referência em qualidade de vida, é inadmissível que tantos moradores continuem sem acesso ao direito fundamental à moradia digna, completa Gabriela.
A Prefeitura contesta os dados de André Gonçalves Fernandes. Questionada, a Diretoria de Comunicação alegou que, "em levantamento recente na APC1 (Área de Proteção Cultural 1 - bairro Centro), é possível afirmar que aproximadamente 75.500 m² de área construída estão desocupadas, aproximadamente 16% da área construída total".
A Diretoria de Comunicação disse ainda que "cerca de 140 imóveis estão desocupados, aproximadamente 27% dos imóveis da APC1".
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O órgão da Prefeitura ressaltou que "através de diversos instrumentos legais, beneficia os proprietários de imóveis no Centro e também a quem interessar investir nessa região com uma série de isenções, tanto no Programa Alegra Centro (LC 1085/2019), quanto no Santos Criativa (LC 1054/2019)".
E que, no "âmbito habitacional, é possível obter a Isenção total do ITBI e do IPTU".