Cotidiano

Raio-X DL: Do maior porto à maior favela em palafitas

Dique da Vila Gilda, na Zona Noroeste de Santos, tem mais de 10 mil moradores. Maior programa de macrodrenagem do País caminha lentamente e sem solucionar problemas das enchentes

Daniela Origuela

Publicado em 04/07/2015 às 23:47

Atualizado em 07/10/2022 às 16:50

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De um lado o maior porto da América Latina. Do outro, a maior favela em palafitas do País: o Dique da Vila Gilda. A riqueza movimentada nos navios que entram e saem do complexo portuário contrasta com a pobreza evidenciada nas habitações de madeira fincadas às margens do Rio do Bugre, na Zona Noroeste. Distante do maior jardim de praia do mundo, aquela região faz parte de uma Santos que não é vista nos cartões postais ou nas propagandas.

O Diário do Litoral esteve no Caminho São Sebastião, uma das favelas que integra o Dique da Vila Gilda, em um dia de chuva intensa. A rua principal é asfaltada. As casas de alvenaria da avenida escondem as palafitas, cujo acesso se dá por becos apertados. Esgoto encanado não é um privilégio de todos. Nas habitações improvisadas, os detritos são despejados diretamente na maré.

Foi no final de um beco alagado pelo temporal que a Reportagem encontrou um dos primeiros moradores das palafitas do Dique da Vila Gilda, o pescador David Ribeiro Dias, o Marruco. O barraco de um cômodo, onde mora, é um dos mais antigos do local. “Nasci em Santos, no antigo Matadouro. Quando cheguei aqui só tinha as casas da frente. Fui um dos primeiros a erguer a palafita. Antes de vir morar vinha para cá só para tomar conta das embarcações”.

Pescador desde os 10 anos, Marruco é servidor público aposentado. Disse não se incomodar com a habitação precária, mas reconhece que a falta de opção leva a maioria dos moradores para as palafitas. “Eu não me incomodo de morar aqui. Sou pescador. Caiçara mora em palafita. É disso que eu gosto e daqui só saio direto para o Areia Branca (cemitério). Mas tem muita gente que não tem dinheiro para pagar aluguel e por isso mora nas palafitas. O importante é que aqui todo mundo se respeita. É sim, senhor. Não, senhor. Sou feliz aqui. Está vendo aquela garça cinza (aponta para uma ave procura comida em meio a resíduos no mangue) todo dia elas vêm aqui as 5h30 e eu dou peixe para elas. Já se acostumaram”, disse o antigo morador, que convidou a Reportagem para retornar em um dia de sol para passear de barco e comer camarão.

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Na rua principal, a Reportagem conheceu José Pereira, o Zezinho. O bar dele é referência e estava cheio de clientes. Saiu de Pernambuco com a esposa em 1974 e foi morar em um barraco de madeira no beco 109 do Caminho São Sebastião. “Trabalhei na praia e fui juntando dinheiro para comprar uma casa de alvenaria na parte da frente (onde atualmente é o bar). Morava em um barraco caindo aos pedaços. Meus três filhos nasceram aqui. Adoro esse lugar”, disse.

Ao lado do bar de Zezinho há um canteiro de obras do Santos Novos Tempos, que nunca foi utilizado. O projeto visa eliminar as enchentes na Zona Noroeste. “Faz dois anos que começaram as obras, mas está tudo parado. O canal agora está mais estreito. Ainda assim lá embaixo enche mais do que aqui”, afirmou. Em frente ao comércio do pernambucano há uma pequena praça com bancos e mesas e uma grande árvore. “A pracinha fui eu que fiz e árvore eu plantei. Ia ser bom para mim e para os outros moradores”.

Zezinho ressalta o preconceito que moradores de outras regiões de Santos têm com o local. “Quando a gente fala que mora aqui o pessoal não olha muito bem. Tem muita gente que tem medo de vir aqui. Mas quando vem pela primeira vez, e é bem recebido, vê que aqui é um lugar bom. A maioria volta”.

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Dique da Vila Gilda abriga mais de 10 mil moradores (Foto: Luiz Torres/DL)

Contexto social

Leandro Valença, de 35 anos, cresceu nos becos e vielas do Dique da Vila Gilda. Criado em uma palafita humilde do Caminho São Sebastião, o assistente social viu a miséria e os caminhos tortos da vida andar lado a lado. Em um lugar onde faltam espaços de lazer, nadar na maré em dias de calor ainda é uma brincadeira comum entre as crianças.

“Uma cena marcou muito a minha infância. Uma ‘tiazinha’ lavando as roupas em cima da ponte entre as palafitas porque não tinha tanque na casa dela. A miséria no Dique da Vila Gilda ainda é grande. Faltam direitos básicos. São mais de 10 mil moradores”, disse Valença. “Se eu falar que não gostava de morar na palafita estou mentindo. A gente se acostuma porque não tem outro jeito”.

Valença se formou no curso de Serviço Social e fundou uma Ong para levar inclusão social aos moradores daquela região: a Procuru. A entidade realiza trabalho cultural e de capacitação profissional junto à comunidade. “Enxerguei um caminho para minha vida através do hip hop. A cena da ‘tiazinha’ esfregando as roupas na ponte me deu senso de justiça. Há poucas oportunidades na comunidade e o objetivo da ONG é levar para os jovens as oportunidades que eu e muitos não tiveram”.

Valença também ressaltou o preconceito existente com quem mora no Dique da Vila Gilda. “Abrir crediário e entrevista de emprego sempre foi dificuldade. As pessoas não viam e muitas ainda veem com bons olhos. A verdade é que a Zona Noroeste é uma zona diferente. Muitas pessoas pensam que a Zona Noroeste é São Vicente”, afirmou.

Aglomerados De acordo com o Censo realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Santos é a segunda Cidade do Brasil com o maior número de palafitas – 26,91% no ranking nacional - perdendo apenas para Macapá, capital do Amapá, que lidera a lista com 83,9% de moradias nessas condições, em relação aos outros municípios. No entanto, o Dique da Vila Gilda, que abriga 10.176 moradores, é a maior favela do País.

As palafitas são consideradas aglomerações subnormais. O termo utilizado pelo IBGE apresenta informações sobre a população residente e o número de domicílios ocupados em favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros assentamentos irregulares para o conjunto do País, Grandes Regiões, Unidades da Federação e municípios.

Segundo o IBGE, Santos possui 38.159 pessoas morando em 10.767 domicílios localizados em aglomerados subnormais.

Motoristas que trafegam pela Avenida Nossa Senhora de Fátima convivem com alagamentos (Foto: Matheus Tagé/DL)

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Novos Tempos?

Com 10 anos de trabalho desde o início dos estudos, o Programa Santos Novos Tempos ainda não apresentou resultados efetivos para os moradores da Zona Noroeste.

Considerado o maior programa de macrodrenagem do País, o projeto promete acabar com as enchentes em diversos bairros de Santos, além de dar fim as palafitas com a construção de novas moradias.

Desde o começo das obras, em 4 de setembro de 2013, o Santos Novos Tempos conviveu com atrasos. Por diversas vezes, o prefeito Paulo Alexandre Barbosa (PSDB) atribuiu esses aos problemas relativos à complexidade do solo.

Já o engenheiro Márcio Lara, responsável pelo programa, chegou a comparar o projeto com os canais de Santos. Criados pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, os canais foram construídos entre 1905 e 1927 (22 anos, no total).

O Santos Novos Tempos foi dividido em três fases. Entretanto, após quase 2 anos de trabalhos, o programa está na segunda fase, ainda não concluída. Além disso, o contrato com o Banco Mundial, que financiava parte das obras, se encerrou no último dia 30 sem que a Prefeitura tivesse utilizado toda verba disponível. Dos 44 milhões de dólares disponibilizados, foram gastos aproximadamente 55% desse valor.

Entre as obras concluídas estão os aterros das Estações Elevatórias com comportasHaroldo de Camargo, Hugo Maia, Saboó, Comporta C1; a implantação de 423 m da galeria da Avenida Haroldo de Camargo; a galeria da Comporta C1 (em conclusão) e a implantação de adutora de água tratada alternativa na Avenida Martins Fontes.

Segundo a Prefeitura, atualmente, os trabalhos concentram na dragagem do Rio São Jorge, que está 85% concluída. Após isso, o programa segue para a construção das galerias das Avenidas Martins Fontes e Hugo Maia e construção das Estações Elevatórias/Comportas. A estimativa para o término dessas obras, após iniciadas, é de 30 meses.

Questionada sobre os atrasos nas obras do Santos Novos Tempos, a Administração respondeu que “o cronograma encontra-se em revisão”.

Habitação ainda longe

Na questão da habitação, o Santos Novos Tempos também está longe da sua meta. O projeto inicial previa a construção de 5400 unidades habitacionais. Entretanto, 1356 foram entregues até o momento, cerca de 25% do estimado.

São 480 no Pelé II (Rádio Clube), 56 sobrepostas na Quadra 1 Flor Horácio Cyrillo (Castelo), 160 no Caneleira IV (contrapartida formal do empréstimo), 160 no Cruzeiro do Sul II (Nova Cintra) e 500 nos Conjuntos Santos C e N (Estradão) pela CDHU.

Outras 1395 unidades estão sendo construídas e devem ser entregues até o primeiro semestre de 2016. São 520 no Conjunto Caneleira IV; 205 no Santos O (São Manuel) pela CDHU; 1210 no Tancredo Neves III.

Entretanto, se somadas, as habitações entregues e em construção somam 3.291. Uma diferença de 1.909 habitações em relação ao projeto inicial.

Já sobre as 2200 unidades que iriam passar por urbanização no Dique da Vila Gilda, São Manoel e Vila Alemoa, o projeto visa melhoria hidráulico-sanitária, elétrica, de revestimentos, de iluminação para cada uma das moradias a consolidar. Segundo a Prefeitura a licitação para as obras, por duas vezes, deu deserta. Os serviços de ligação de água e esgoto já foram iniciados.

Projeto do teleférico nos morros segue em ritmo lento

O sonho do santista em chegar aos morros através de um moderno sistema teleférico parece ter sido adiado. A Prefeitura de Santos não mostra a mesma empolgação hoje com o projeto de implantar esse modal nos morros. A euforia já foi maior.

A Reportagem enviou seis perguntas para a Secretaria Municipal de Comunicação e Resultados (Secor), mas só obteve uma resposta. A Administração Municipal confirmou que o projeto básico do teleférico já foi desenvolvido, assim como o Relatório Ambiental preliminar.

A Secor explica que a Prefeitura aguarda a obtenção da autorização da Cetesb, mas não especificou para quando espera essa resposta. “Essa é a etapa que antecede a licitação”.

A Administração Municipal voltou a ressaltar que busca parcerias com o Governo Federal para viabilizar os recursos para as obras, e não respondeu cinco das seis perguntas feitas pelo Diário do Litoral: foi feita reserva de verba para o orçamento municipal para o próximo ano? Qual o valor total do empreendimento?- Quanto desse valor vem do Governo Federal? Qual o prazo para a entrega do equipamento? E quais as primeiras estações a serem entregues?

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