Cotidiano

Papo de Domingo - ‘Só a educação pode vencer o racismo’

O jornalista e professor na Educafro/BS, Michel Carvalho, afirma que se a cultura e a história afro-brasileira integrasse a grade curricular desde o ensino básico haveria uma mudança de mentalidade

Bárbara Farias

Publicado em 14/09/2014 às 10:41

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O Brasil é um país miscigenado. Os brasileiros têm ancestrais negros, brancos, indígenas, asiáticos. Todas as culturas se misturam, herdamos costumes dos povos de nossa árvore genealógica. Usamos vocabulários, comemos pratos típicos, trazemos no sangue, na pele, no cabelo, em cada gene, as informações hereditárias de muitas raças. Mas, por que, mesmo assim, somos racistas? Somos todos racistas? Que atos caracterizam o racismo?

A questão é polêmica e volta à pauta de discussões. Três episódios recentes de racismo provocaram discussões acaloradas e até violência. Uma foto de um casal de namorados, sendo ela negra e ele branco, o xingamento contra o goleiro do Santos Futebol Clube, o Aranha, e agora, a série televisiva da Rede Globo que ainda não estreou, ‘Sexo e as Negas’.

O jornalista Michel Carvalho, que é mestre em Ciências da Comunicação pela USP e professor na Educafro/BS é um estudioso de mídia e etnia, tema que aborda em sala em aula.
Para ele, o racismo está enraizado dentro de nós e a educação é o principal meio de combatê-lo. É com Michel  Carvalho, o ‘Papo de Domingo’ desta semana. 

Diário do Litoral (DL) – Qual é a principal “arma” contra o racismo?

Michel Carvalho – Eu acredito que ninguém nasce racista. É um contexto familiar. Um contexto de vários agentes de socialização que são responsáveis pelo racismo. Eu acredito que só com uma educação desde o ensino básico, com a questão da Lei 10.639/2003 (altera a lei que estabelece as diretrizes e bases da Educação), introduzindo o ensino da cultura e da história afro-brasileira na escola é que a gente vai tentar mudar essa questão que é tão banalizada. A gente tem aquele estereótipo do negro, associado ao samba, à pobreza, à favela, ao exótico, à malandragem. Ao inserir disciplinas desde o ensino básico, no ensino fundamental, mostrando como a riqueza da cultura e da história africana têm papel importante até no nosso vocabulário. Mostrar que vários intelectuais desse país como Milton Santos, que é o maior geógrafo desse país, é negro e Muniz Sodré (pesquisador da URFJ). Apesar de tantos intelectuais, a gente explora sempre os mesmos estereótipos.

DL – Você disse que a nossa cultura nega o racismo. Como assim?

Michel – O Muniz Sodré, que é um pesquisador da URFJ, um intelectual que eu respeito muito, negro, diz que uma das maneiras de ser racista é negar o racismo. A gente nega o racismo porque não é algo confortável para uma nação admitir que é racista. Quando vêm as datas 13 de Maio e 20 de Novembro, a mídia mostra sempre as mesmas matérias: um grupo de capoeira aqui, vai no busto de Zumbi dos Palmares, é sempre a mesma dinâmica, aquela coisa pueril, superficial, que não colabora. Celebrar feriados como estes tem todo um contexto de não deixar esquecer a opressão, submissão, e como isso ainda se reflete hoje. Conversando com o Conselho Municipal da Comunidade Negra de Cubatão, eles falam como ainda é muito latente essa questão racista dos subempregos, a maioria são ocupados por negros.

DL – Como você avalia o comportamento da torcedora do Grêmio que chamou o goleiro Aranha, do Santos FC, de “macaco”?

Michel – Eu não concordo com esse linchamento público dela, mas eu penso que aquela reação que ela teve é fruto de um contexto, fruto de anos e anos dessa formação escolar, contexto familiar, que de alguma maneira introjeta nela esse tipo de sentimento. No calor da emoção a gente fala “macaco”, mas a gente sabe que é diferente chamar um jogador por um outro nome e chamar um negro de “macaco”. Há toda uma carga semântica em chamar um negro de “macaco”, porque associa a um selvagem, tem um caráter todo depreciativo.

“É o mesmo estereótipo, a mesma mulher negra do subúrbio, da favela, sensual. Por que não mudar esse paradigma?”, sobre personagens negros da TV (Foto: Luiz Torres/DL)

DL – Você disse que atos como o da torcedora do Grêmio são esporádicos e menos graves do que o racismo institucional. O que é racismo institucional?

Michel – É aquele que a menina negra tem um currículo tão bom quanto a menina loira, que fica com a vaga.Esse racismo é muito mais difícil de ser comprovado. Esse, para mim, é o mais preocupante. Esse da torcedora que gritou “macaco” todo mundo vai repudiar. Esse é o de menos. O racismo diário é preocupante, num banco, por exemplo, quando o segurança suspeita de um negro, e às vezes, o segurança é negro também. E, aí, tem uma questão de auto-estima desse segurança: “eu sou negro, mas sei como é que é” (diria ele). Uma questão da auto-estima do próprio negro que já se coloca na condição de suspeito. Por isso eu digo, é uma questão que deve começar desde a educação básica. A questão da Lei 10.639/2003. Só isso mesmo pode mudar essa mentalidade.

DL - Você é a favor da política de cotas? Por que?

Michel – Eu trabalhei na Unifesp, em Santos, por alguns anos. Lá eu tive a oportunidade de ver como a universidade é branca. A universidade pública é branca. Os poucos negros que tinham, entraram pelo sistema de cotas. Lá tem um sistema de cotas que é assim: escola pública, três salários mínimos e ser negro (requisitos). E quando eu falo negro são pretos e pardos. Eu sou a favor das cotas, mas não de forma permanente. A lei de cotas favoreceu muito o ingresso de negros nas universidades públicas. Hoje já é possível falar que negros serão médicos, pelas cotas e pelo Prouni. E isso é uma coisa emblemática. O menino negro vai ser atendido por um médico negro e vai ver que é possível ser médico mesmo sendo negro. A falta de referencial é um complicador.  

DL – Mas a política de cotas não tira a oportunidade de alguém que tem mérito, que está preparado para passar num teste e ingressar em uma universidade ou emprego, independente da cor da pele?
 

Michel – A meritocracia é superestimada como elemento para o ingresso no ensino superior. Só que o ensino superior público em vez de privilegiar o mérito, ao adotar as cotas, ele faz uma opção em privilegiar a diversidade étnica da sociedade brasileira. Déborah Duprat, vice-procuradora-geral da República, durante o julgamento sobre cotas raciais no STF (Supremo Tribunal Federal), em abril de 2012, disse que “a missão que a universidade elege é que vai determinar os méritos para a admissão. Se a universidade elege como missão de promover a diversidade é esse o critério a ser medido. A Constituição não prega o mérito acadêmico como único critério”. Ela faz uma defesa veemente. Ela falou que o ensino superior tem várias maneiras de ingresso, entre eles privilegiar o mérito ou a diversidade étnica de um povo. Com as cotas está se privilegiando a diversidade étnica. A questão do mérito é relativa. Você tem um estudante que sempre estudou em escola particular, teve tudo do bom e do melhor, os pais sempre tiveram bons empregos. Então que mérito ele tem de passar numa USP?

DL – Quando eu falo de mérito, me refiro ao estudante estar preparado para passar num vestibular.

Michel - Existe o mérito do aproveitamento escolar, ele teve uma série de oportunidades que viabilizaram esse mérito e ser capaz de passar no vestibular, mas isso é excludente quando a gente leva só em conta a questão do mérito acadêmico. Porque o que eu vi in loco na Unifesp foram alguns alunos negros, com uma deficiência em termos de aproveitamento escolar, mas lá eles se superaram.

DL – Para você, as cotas são uma oportunidade àquele estudante negro que tem potencial, mas não teve uma boa formação escolar?

Michel – Eu tenho uma amiga que veio da Bahia, prestou o Enem, passou para Educação Física na Unifesp, fez mestrado e hoje é uma mestra em Ciências da Saúde pela Unifesp. Ela não reunia as competências suficientes para entrar no ensino superior público, mas olha que porta a gente fecharia para essa menina. Lá (Unifesp), ela ficou de exame, pegou DP em várias disciplinas, mas lá ela se superou.

DL – Como você analisa a polêmica em torno da série da Rede Globo, ‘O Sexo e as Negas’, de Miguel Falabella? Algumas denúncias foram feitas na semana passada à Secretaria Especial da Promoção da Igualdade Racial.

Michel – É o pé atrás que o negro já tem. Ele nem viu, mas fala: já sei, de novo vem mais um estereótipo. Nós tivemos algumas produções com negros: Antonia, Subúrbia. É o mesmo estereótipo, a mesma mulher negra do subúrbio, da favela, sensual, que mesmo com todas as dificuldades é batalhadora, que corre atrás dos seus sonhos. Há algo de positivo nisso, mas porque só reforçar isso? Por que não fazer uma minissérie com quatro mulheres negras executivas, jornalistas, bem sucedidas. Por que fazer uma versão brasileira do ‘Sexy in the City’ com negras na favela? O Miguel Falabella diz que ele é um escritor que fala do subúrbio, mas por que não quebrar o paradigma?

DL – Você concorda com o termo “afrodescendente” classificando só as pessoas que têm pele negra ou parda? Eu sou branca e sou afrodescendente.

Michel – Cubatão, por exemplo, foi o primeiro município a adotar as cotas no serviço público, e lá na lei está o termo “afrodescendente”. Já teve até questionamentos jurídicos em relação a isso porque afrodescendente todos nós somos. Por isso, é que se tenta mudar esse termo para “negro”, entre parênteses negros e pardos, porque o afrodescendente carrega sim um problema. Na questão dos ancestrais, é possível que um branco tenha um negro na sua árvore genealógica. Então, se você for levar essa questão como critério para ser beneficiário de algum programa é complicado.

DL – Para você, um homem ou uma mulher negra que opta por namorar ou se casar com brancos porque quer ter filhos brancos —  usando um termo horrível, mas comumente falado — para “embranquecer” a família, é racista, está negando a sua própria raça?

Michel – Crescer na vida para um negro o que é? Ter acesso aos bens de consumo e, de certa maneira, se envolver com uma mulher branca. Isso está no imaginário coletivo. Então, eu não acredito que ele seja racista, mas sim porque ele cresceu nesse ambiente racista que o faz ter determinadas preferências.

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