Cotidiano

Os moradores invisíveis de Santos

A Reportagem percorreu ruas e avenidas sujas, mal conservadas e escuras do lado mais esquecido da Área Insular do Município

Publicado em 27/06/2015 às 22:00

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Grande parte dos santistas não sabe e outra parcela faz questão de não saber que existem dezenas de seres humanos invisíveis em Santos. Amontoados em pequenos grupos por segurança, os moradores de rua sobrevivem na Terra da Caridade e da Liberdade. Não são notados e nem se fazem notar na Vila Mathias, Vila Nova e no Paquetá, bairros em que o verdadeiro corredor de miséria sobressai aos olhos até dos mais céticos.

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Basta o sol começar a se pôr para se iniciar a peregrinação pelas ruas, ora de paralelepípedos, ora de asfalto, a procura de um melhor lugar para passar a noite. E faz tempo que essa rotina acontece, sem que boa parte da população que mora mais próximo à praia perceba. Aliás, na Terra de Brás Cubas, em que se estuda fechar uma das faixas da avenida da praia aos domingos para transformar o espaço em áreas de lazer para quem já tem lazer corriqueiramente, passa despercebida a discussão do que fazer com essa camada menos favorecida da população.

Na noite fria da última quinta-feira (25), a Reportagem percorreu as principais ruas e avenidas sujas, mal conservadas e escuras do lado mais esquecido da Área Insular do Município. E a paisagem não foi nada agradável. Não pela pobreza observada em cada esquina, mas pela falta da mão do Estado, que parece desconhecer que na Cidade existe uma parcela da população que sofre, e muito, para garantir o básico: comer e beber.

Debaixo de marquises deterioradas pelo tempo, sob a proteção de carroças repletas de objetos pessoais e de vira-latas sempre atentos, se agasalhando como podem com cobertores puídos e mal cheirosos, os pobres cidadãos esquecidos não escondem a certeza que a sociedade pouco tem a lhes oferecer.

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Para segurança, eles vivem amontoados em pequenos grupos (Foto: Matheus Tagé/DL)

Por outro lado, esses pintores, padeiros, pedreiros, porteiros, cabeleireiros, enfim, trabalhadores que moram na rua, têm muito a oferecer. Mas faltam documentos, roupas apropriadas e residência fixa, requisitos convencionais e indispensáveis no mercado de trabalho em que a aparência ainda sobrepõe o caráter e o talento. Além de tudo, a autoestima perdida frustra qualquer intenção de sair da sarjeta e empurra para o álcool e às drogas, quando não para o crime.

Sem lenço, sem documento

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Há quatro anos nas ruas, Paulo dos Santos já trabalhou como pintor e padeiro. Após ter se separado da mulher, foi atraído pela vida nas ruas sem se dar conta. “As pessoas não dão oportunidade para a gente. Pensam que somos daquele jeito largado, que não gosta de trabalhar. Não dão voto de confiança e pensam que todos somos ladrões ou ‘psico’, usuário de drogas. Só gosto de cachaça e de cigarro. Posso trabalhar tranquilamente. Não me contratam porque não tenho casa, mesmo eu dando o endereço do Prato de Sopa (Associação Prato de Sopa Monsenhor Moreira, instituição beneficente, que fechou suas portas recentemente)”, afirma, alertando a existência de dezenas de pessoas na mesma situação reunidas em ‘malocas’ — expressão usada pelos próprios moradores de rua quando se referem aos grupos que se reúnem para dormir.

Durante o percurso, o Diário do Litoral contou diversas ‘malocas’ espalhadas e muitos moradores dormindo isoladamente pelos bairros, incluindo a região do Mercado Municipal, que também vira uma espécie de quarto durante à noite. O pedreiro Marcelo dos Santos, enquanto terminava uma ‘quentinha’, revelou que o alcoolismo causou-lhe a perda da família e dos documentos, esses últimos já estão sendo recuperados. “Espero que com os documentos eu volte a ter emprego, mas sem indicação é difícil, mesmo em obras. Eu sobrevivo do papelão e das latinhas. Sábado e domingo desço à praia para recolher material. Chego a ganhar R$ 40,00 por dia. Como no Bom Prato por R$ 1,00 e tomo café com R$ 0,50. Se a pessoa falar que não dá para comer está mentindo”, explica.

O marteleteiro (perfurador de concreto) Lázaro Vilmar Costa Júnior não encontra emprego em função de sua condição de vida. “As pessoas preferem dar comida do que trabalho. Não me resta alternativa senão catar papelão. Não sou vagabundo. A gente que mora na rua ajuda sempre o outro nas mesmas condições. Hoje, estamos dormindo em 10, mas chegamos a uma ‘maloca’ com 18 pessoas. Tem muita gente nessa situação. Dá até tristeza. Hoje, até as igrejas não ajudam. É uma religião falando mal da outra. A gente fica maluco e sem oportunidade de emprego. Eu já caí e levantei várias vezes”, revela.

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Violência não vem da PM

Quando o assunto se voltou à violência urbana, a Reportagem foi surpreendida com a informação de que ela não parte de marginais, de jovens inconsequentes ou da Polícia Militar, mas sim da segurança patrimonial e municipal. “Não mexemos com ninguém. Não é justo sermos espancados por causa de uma minoria que apronta”, completou um dos moradores que não quis se identificar, mencionando a atuação dos seguranças do comércio e, principalmente, a Guarda Municipal de Santos. A situação também foi denunciada em outras ‘malocas’. 

Rafael Bryan Ferreira é cabeleireiro. Ele chegou a trabalhar com a mãe em Vicente de Carvalho, distrito de Guarujá, mas se desentendeu com a família e resolveu morar nas ruas de Santos. “Foi por causa das drogas. Eu fumo crack. Nosso maior problema não é com os moradores, mas com a Guarda Municipal que toma nossas coisas, jogam nossos alimentos fora e nos humilham. Eles (guardas) não gostam de ver a gente na rua. Nosso martírio começa às 9 horas. Já levaram vários RGs (identidade) e carteiras de trabalho meus. Ainda batem na gente. Não consigo trabalhar porque não tenho endereço fixo”, revela.

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Maicon Ferreira da Cunha já trabalhou como chapa (que auxilia caminhoneiros na carga e descarga de veículos) e padeiro. “Escolhi a rua. Sou usuário de drogas e não me dou bem com minha família. Tenho uma filha que mora no Bolsão 8 (Cubatão) com uma irmã. Gostaria de mudar de vida, mas não consigo. Quem tem antecedentes criminais ou passou por clínica de reabilitação a situação ainda é pior. As pessoas acham que viciado será sempre viciado. Existe até lugar para dormir, mas o ambiente não é muito bom, pois não se separa bandido de gente de bem”, conta se referindo a albergues municipais.

Reportagem continuou percorrendo as ruas e avenidas dos três bairros, onde era muito comum perceber moradores de rua pedindo dinheiro em semáforos (Foto: Matheus Tagé/DL)

Auxílio que nunca chega

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Vanessa dos Santos Neves, ex-caixa de supermercado, interrompeu Cunha para informar que as igrejas são as entidades que mais ajudam os moradores de rua. Ela informa que o auxílio aluguel oferecido em projetos sociais depende da pessoa ter um emprego e preencher uma série de requisitos que praticamente torna inviável a saída das ruas. “A pessoa tem até força de vontade, mas o sistema não ajuda. Os benefícios não chegam. Não se tornam o início de tudo. A burocracia é tanta que você desiste”, revela Vanessa, que perdeu a única casa que morava há alguns meses.

Ela revelou ainda que é praticamente impossível um morador de rua se reerguer em função do valor dos aluguéis em Santos, mesmo nos bairros mais carentes, que chegam a R$ 600,00 por mês, para morar num quarto com cozinha. “Pagando água e luz, o valor pode chegar a um salário mínimo (R$ 788,00). E a comida? Não tem como sobreviver. Até em favela o aluguel tá caro. Em Guarujá, no bairro de Cachoeirinha, um barraco de madeira custa R$ 250,00 por mês”, finaliza. 

Após ouvir outras histórias semelhantes, a Reportagem continuou percorrendo as ruas e avenidas dos três bairros, onde era muito comum perceber moradores de rua pedindo dinheiro em semáforos, se aquecendo em fogueiras improvisadas, disputando uma garrafa de pinga, um cachimbo de crack ou cigarro de maconha.

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Mas também não foi difícil ver homens e mulheres falando sozinhos, discutindo problemas pessoais consigo mesmos, intercalando momentos de consciência total e completo desatino. Conversando com a solidão que não desgruda, que insiste em atormentar o ensurdecedor silêncio que não tem fim.

Um contingente significativo

Levantamento apresentado pela Prefeitura de Santos revela que a Cidade possui cerca de 600 moradores de rua (exatos 597, segundo censo realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – Fipe, em 2013). Eles realmente se concentram na Vila Nova (16,1%) e Vila Mathias (12,9%).

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Segundo a Administração, 86,6% são homens; 48,8% possuem de 31 a 49 anos e 40,8% são pardos. A maioria (72%) veio de outras cidades, 84% se declararam usuários de drogas, 64,9% consomem álcool e 43,5% usam mais de uma substância para se drogar. Vários motivos levam as pessoas a optarem pela vida nas ruas, como a drogadição, desemprego, despejo, desentendimento familiar e separação conjugal.

A Secretaria de Assistência Social afirma que faz abordagem de rua, diariamente, das sete à meia-noite, além do plantão da meia-noite às seis horas. Conta com o Centro Pop (Rua Conselheiro Saraiva, 13) que funciona como uma espécie de porta de entrada desse público na rede de serviços socioassistenciais e oferece 204 vagas em acolhimento, entre público e conveniados (a maior oferta da região) e trabalha a inclusão em cursos de inclusão no mundo do trabalho. Denúncias podem ser feitas pelo telefone 0800-177766.
Sobre a denúncia dos moradores, a Prefeitura informa que o tratamento dado pela Guarda Municipal de Santos às pessoas em situação de rua é o mesmo de que para um cidadão comum. Não existe diferença na forma de abordagem, conversa e educação.

Segundo explica, as pessoas em situação de rua são conduzidas de maneira espontânea para o Centro de Convivência. Chegando ao local, são questionados sobre forma que chegaram até ali e todos — 100% deles — responderam que foram bem atendidos pela Guarda Municipal.

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Finaliza dizendo que a GM não faz nenhum tipo de atendimento compulsório, pois não é a forma de trabalho. Caso seja constatada alguma irregularidade é preciso ir até a sede da GM e fazer a denúncia. Uma investigação interna será feita e, caso constatada a irregularidade, o GM será punido.

Bom Prato é alternativa

Santos conta com duas unidades do Restaurante Bom Prato. Cada equipamento oferece, das 7 às 9 horas, 300 cafés (R$ 0,50) e, a partir das 10h30, 1.200 refeições, de segunda à sexta-feira, por R$ 1,00. O da Vila Nova funciona na Praça Iguatemi Martins, s/nº, anexo ao Mercado Municipal. Já o endereço da unidade da Zona Noroeste é Avenida Nossa Senhora de Fátima, 517, no bairro de Chico de Paula.

Segundo a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Seds), as pessoas em situação de vulnerabilidade social são as que mais frequentam os restaurantes populares. A Seds não tem um levantamento específico de quantos moradores em situação de rua utilizam os equipamentos. Ainda conforme a Secretaria, nas duas unidades de Santos, a maior parte frequentadora é de aposentados (47%).

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