Cotidiano

Navio do terror ficou ancorado por seis meses durante a ditadura em Santos; relembre

Filme 'Ainda Estou Aqui' relata a história do santista Rubens Paiva. Entretanto, o navio-prisão Raul Soares é outra triste lembrança da Cidade

Nilson Regalado

Publicado em 03/03/2025 às 13:10

Atualizado em 03/03/2025 às 13:10

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O navio era da empresa Lloyd Brasileiro e foi "emprestado voluntariamente" à Marinha / Wikimedia Commons/Desconhecido

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O filme 'Ainda Estou Aqui', vencedor do primeiro Oscar da história do cinema brasileiro, retrata a trajetória do santista Rubens Paiva, capturado e morto pela ditadura militar em 1971 e de seu esposa Eunice Paiva. Mas, durante os anos de chumbo da história do País, outro triste acontecimento precisa ser lembrado: a chegada do navio-prisão Raul Soares. 

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Na embarcação, que ficou ancorada no Porto de Santos por seis meses, centenas de estudantes, sindicalistas, jornalistas, estivadores, entre outros, ficaram presos ou morreram.

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Depois das invasões de piratas entre 1580 e 1614 e dos deslizamentos no Morro Santa Therezinha que vitimaram 22 pessoas em 1956 e das invasões aos 18 sindicatos em Santos cometidas um dia após o golpe, Santos viveria seus dias mais sombrios a partir de 24 de abril de 1964. Foi nesse que chegou ao Porto a embarcação, que veio rebocada do Rio de Janeiro para se transformar em prisão. 

O navio era da empresa Lloyd Brasileiro e foi "emprestado voluntariamente" à Marinha. Segundo as projeções da jornalista, advogada, escritora e professora universitária Lídia Maria de Melo, cerca de 260 homens passaram pelo cárcere improvisado enquanto a embarcação esteve fundeada no Canal do Estuário, na direção da Alfândega, da Ilha Barnabé e do Rio Sandi. 

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Os primeiros presos no cárcere flutuante eram militares que não concordavam com o golpe. Com o tempo, chegaram sindicalistas e trabalhadores portuários.

No Raul Soares, havia presos nos porões de proa e de popa. Alguns militares presos denunciaram o uso de inseticida no chão, produto muito tóxico, em um lugar sem arejamento.

Os sindicalistas relataram maus-tratos de vários tipos, desde brutalidade, até ameaça sob a mira de metralhadora e fuzil, assim como a instalação em locais em que não era possível esticar o corpo. A pessoa tinha que ficar sentada curvada.

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Também foram denunciadas situações em que a pessoa era colocada em camarotes que se tornaram solitárias, por meses. Ou seja, incomunicabilidade e falta de banho de sol.

Em alguns locais, os presos ficavam com água até o joelho ou a cintura. Em outros, a temperatura era muito alta e as instalações, de ferro.

Outros locais eram muito frios. Havia revoada de insetos, como cupins e mosquitos. Sem contar o cheiro persistente de fezes e urina.

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Duas das principais lideranças sindicais nos anos 1960, Manuel de Almeida (então presidente do Sindicato dos Operários nos Serviços Portuários de Santos, São Vicente, Guarujá e Cubatão - atual Sintraport) e Waldemar Neves Guerra (presidente do Sindicato dos Empregados nos Serviços da Administração Portuária - atual Sindaport) estiveram confinados no Raul Soares. Ambos eram respeitados em todo País e se reuniam com presidentes da República, governadores, deputados e senadores.

Waldemar havia servido à Força Expedicionária Brasileira (FEB) e lutado na II Guerra Mundial contra as tropas nazifascistas. No entanto, passou 16 dias no cubículo em que a temperatura ultrapassava os 40 graus. E morreu precocemente.

O navio serviu de prisão até 23 de outubro de 1964. Depois de soltos, alguns dos presos não foram libertados. Foram levados de volta ao Palácio da Polícia ou para unidades das Forças Armadas, aqui em Santos, Guarujá e São Vicente, ou em outras cidades fora da Baixada Santista.

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Aos 6 anos, Lídia chegou a visitar o pai no Raul Soares: "A tensão era constante e o fato de saber que eles eram vigiados o tempo todo, mesmo depois de soltos, causaram problemas emocionais nos trabalhadores e em suas famílias. Minha mãe sempre nos alertava para termos cuidado com o que falávamos fora de casa".

Passados 61 anos daqueles dias sombrios, as cicatrizes permanecem vivas nos familiares dos presos políticos.

"Minha irmã mais velha, que tinha 8 anos e compreendia tudo o que se passava, desenvolveu uma doença autoimune, lenta e progressiva. Em consequência dessa doença, ela morreu aos 16 anos, sem ter visto meu pai ser absolvido e o País reconquistar a democracia", relembra a jornalista, advogada, escritora e professora.

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"Durante a audiência da Comissão Nacional da Verdade, da qual participei com minha mãe, em janeiro de 2013, muitos familiares relataram os problemas que enfrentaram. A maioria dos presos já havia falecido. Mesmo assim, vimos que os problemas eram semelhantes. Todo mundo seguiu em frente, mas as marcas ficaram", completa Lídia.

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