O setor vem acolhendo cada vez mais mulheres porque até mesmo as vagas para empregadas domésticas e diaristas estão concorridas / Nair Bueno/DL
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A maioria das pessoas que trabalha em cooperativas de recicláveis da Baixada Santista é mulher, segundo levantamento realizado pelo Diário do Litoral, em parceria com os gestores das entidades. Dos 440 cooperados da região, 222 são mulheres.
Nas cooperativas de Santos, Mongaguá, Itanhaém, Cubatão, Peruíbe e Guarujá o número de mulheres trabalhando já ultrapassou o de homens. Em Santos, por exemplo, dos 80 cooperados, 50 são mulheres. Mongaguá tem 30 colaboradores, sendo 20 do sexo feminino. O mesmo em Cubatão, que contabiliza 20 mulheres e 17 homens.
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Os dados da região vão ao encontro do levantamento feito pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), em 2014, órgão que representa o setor há 18 anos.
Segundo o estudo, existem no Brasil cerca de 800 mil pessoas trabalhando no ramo da reciclagem - desse total, 70% são mulheres.
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O MNCR destaca que há uma incidência maior de mulheres nas cooperativas em comparação com o trabalho individual na rua, porque elas buscam a segurança do trabalho coletivo, enquanto os homens tendem a trabalhar sozinhos, na catação das vias.
Para Fernanda Bento, 31 anos e seis ajudando a administrar a cooperativa ABC Marbas, em Cubatão, o setor é um dos poucos que abre as portas para mulheres com filhos, formação escolar incompleta, e quase sempre, chefes de família.
Ela conta que, para os homens, é mais fácil arrumar 'bicos', enquanto para as mulheres, isso não acontece.
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"Aqui na cooperativa têm muitos casos de homens que trabalham com a gente, aí aparece um bico em uma obra ou na indústria e ele vai. Alguns voltam, mas a maioria não. Já as mulheres não têm esse tipo de oportunidade", explica Fernanda.
Marcelo Silva de Melo, é gestor há mais de dez anos da Cooperben (Cooperativa de Beneficiamento de Materiais Recicláveis e Educação Ambiental do Guarujá). De acordo com ele, o setor vem acolhendo cada vez mais mulheres porque até mesmo as vagas para empregadas domésticas e diaristas estão concorridas, e comumente são rejeitas para quem tem filho pequeno.
"As mulheres que chegam aqui, geralmente, não são mais tão jovens, são mães e chefes de família, sem escolaridade completa. Então enxergam nas cooperativas de reciclagem uma estrutura mais segura e uma oportunidade para se sustentarem".
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Na ABC Marbas, o cenário é o mesmo. Das 20 cooperadas, pelo menos 13 deixaram de contar com o apoio do marido após a separação, não têm ensino médio completo e são as responsáveis pelos filhos e pelo sustento do lar. Sozinhas, preferem a estabilidade do trabalho e da renda mensal oferecida pela cooperativa, do que arriscar no mercado formal.
Outro quesito importante para elas é a flexibilidade de horário, possível também pela compreensão das outras funcionárias que vivem a mesma realidade.
"Ser empregada doméstica sempre é uma opção para quem é pobre, mas além de detonar o corpo - e quem tem idade não aguenta de dor - as patroas quase nunca entendem que tudo depende de nós, que somos sozinhas. Então se um filho fica doente, essa mãe não vai ter com quem deixar e vai faltar no trabalho. Ou se a creche entra em greve, ou em férias, como ela faz? Quase ninguém aqui conta com ajuda da família, muito menos do ex-marido", conta Fernanda.
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Ela desistiu de tentar uma oportunidade no mercado formal, mesmo tendo os requisitos necessários para as vagas em que se inscrevia.
Para Fernanda, o 'não' vinha sempre após os entrevistadores verificarem onde ela morava: Vila dos Pescadores, um dos bairros mais carentes de Cubatão.
"As empresas não querem pagar vale-transporte e ainda existe muito preconceito com quem mora na favela. As vagas acabam ficando para quem mora mais perto da empresa e para os homens, porque nas classes mais baixas, a responsabilidade pela família é, quase sempre, exclusiva da mulher, e quem contrata sabe disso".
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FEMINISMO.
Como Fernanda é uma das cooperadas que trabalha há mais tempo na ABC Marbas, acaba liderando a conversa com a Reportagem. Cheia de histórias, conta muitas que demonstram o quanto o machismo ainda é forte entre as mulheres de classe social mais baixa.
Enquanto separam na esteira o que chega via coleta seletiva, elas conversam sobre a vida. Durante esses anos, Fernanda ouviu um repertório de casos de mulheres que, além de bancar a casa, bancavam o marido e mesmo assim aturavam a violência doméstica.
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"A gente foi criada ouvindo que mulher tem que aguentar, não pode separar porque homens são assim mesmo. De uns anos pra cá que isso tá mudando", declara.
Sandra Abadias, 46 anos, teve um relacionamento abusivo. Por causa do ciúme do marido, não pôde estudar nem trabalhar. Quando ele foi embora, ela se viu sozinha e com os três filhos sob sua responsabilidade.
“Eu não sabia fazer nada, aí me falaram que a cooperativa tinha vaga. Vim e já tô há seis anos. Aprendo muito aqui e me identifico com o que ouço das outras mulheres. A gente se ajuda”.
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Questionadas se os homens têm demonstrado atitudes menos machistas devido à luta das mulheres em busca de igualdade, a resposta é unânime: “Não, eles não estão mudando, não na favela”.
ACIDENTES.
As cooperadas ainda sofrem com o descarte feito de qualquer maneira, e o descaso deixa marcas nas mãos dessas mulheres. Algumas têm cicatrizes de cortes causados por vidros quebrados, outras tiveram que ir para o hospital às pressas depois de terem furado o dedo em agulhas de insulina descartadas sem proteção.
“Os recicláveis e o lixo têm um caminho que não acaba quando você coloca eles para fora da sua casa. Mas, as pessoas não pensam nisso”, conta Abadias.
Na dúvida, basta pesquisar na internet formas seguras de descartar o que vai para o lixo e de embalar o que é reciclável. Esse tipo de atitude facilita a vida de quem recebe o material.
AGENTES AMBIENTAIS.
São pelas mãos das mais de 400 pessoas que trabalham no setor da reciclagem na Baixada Santista, que toneladas de produtos deixam de ir para o saturado aterro sanitário Sítio das Neves, na Área Continental de Santos.
Só no município, em 2018, uma montanha de mais de 12 mil toneladas de recicláveis voltaram à cadeia produtiva pelas mãos desses trabalhadores.
Mas, a mudança de postura em relação ao que se joga fora caminha devagar no país. Um levantamento divulgado ano passado pelo Sindicato Nacional das Empresas de Limpeza Urbana (Selurb), mostrou que o Brasil ainda perde R$ 5,7 bilhões por ano ao não reciclar resíduos plásticos. Ou seja, o valor pode ser bem maior, visto que o estudo levou em conta apenas o que é plástico.
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