Cotidiano
Na Baixada Santista, Cubatão é o município que, proporcionalmente, pode ser considerado o mais nordestino da região. Segundo o Censo de 2010, dos 118.200 habitantes, 31.234 são migrantes
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No sotaque ‘arretado’, o grego e o hebraico
“Eu casei com um nordestino e de burro ele não tem nada. Aprendeu o grego e o hebraico e se tornou professor dessas duas línguas antigas. Uma pessoa super culta, que sabe conversar sobre qualquer assunto. Lê três livros diferentes de uma só vez”. O desabafo da esposa do empresário Marcus Vinicius da Rocha, de 44 anos, foi escrito em uma rede social em resposta aos ataques dirigidos aos nordestinos, logo após o resultado final do segundo turno das eleições presidenciais. O marido é apenas mais um dos milhares de migrantes que residem na Baixada Santista e ajudam a construir a história de uma das regiões mais importantes do estado de São Paulo.
Marcus Vinicius nasceu em Natal, capital do Rio Grande Norte. Saiu de sua terra em 1978, aos oito anos de idade, junto com avós, tias, tios e primos, com destino a Santos. “Meu tio, que já morava aqui, decidiu nos buscar. Ele já tinha vida estabelecida e sentia muita falta da família”, conta. Antes de buscá-los, ele já havia preparado toda a estrutura para abrigar os parentes. Em pouco tempo todos estavam empregados. “Aqui tinha muito emprego naquela época. Até meu avô, que era aposentando, conseguiu trabalho”.
O tio de Marcus, que também é nordestino, chegou à Baixada Santista em 1944. Na época, as primeiras fábricas do polo industrial de Cubatão estavam sendo erguidas. Trabalhou como servente na antiga Companhia Siderúrgica do Estado de São Paulo (Cosipa) e foi crescendo de cargo ao longo dos anos. Realizou cursos técnicos, empreendeu e atualmente é um empresário bem sucedido do setor portuário. “Ele viu que faltava um determinado serviço no Porto de Santos. Juntou dinheiro e decidiu abrir sua própria empresa”, afirma.
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O potiguar relata que, por questões familiares, teve uma infância muito tumultuada. Saiu de casa aos 16 anos, viajou e retornou aos 26. Tornou-se evangélico e foi parar em um seminário da Igreja Batista. “Aprendi a gramática grega e hebraica. Estudei durante quatro anos”, destaca. Marcus Viniciu passou a dar aulas das duas línguas antigas. “O seminário abriu a minha cabeça. Me fez enxergar que o mundo é bem maior que o meu umbigo”.
Filho de uma família de artesãos, o migrante, há 22 anos, é tatuador. Montou um estúdio no Centro de Santos, onde atua há 17 anos. Carrega o estigma de ser nordestino e das tatuagens que têm pelo corpo. “Um dia desses, duas clientes, universitárias, estavam no estúdio e ao conversarmos ficaram surpresas. Não imaginavam que um cara tatuado lesse Michel Foucault (autor filósofo)”, detalha. Entre as maiores paixões de Marcus Vinicius está a leitura, sobretudo de obras relacionadas à filosofia, sociologia e psicologia. “Hoje ficou mais fácil ler. Quando não dá para comprar o livro, a gente baixa em PDF e lê no computador”.
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Casado e pai de dois filhos, o tatuador tem orgulho de sua origem, mas se sentiu ofendido com os ataques direcionados aos nordestinos na internet. “Achei uma ofensa à minha avó que tem 99 anos, mas é uma pessoa lúcida, coerente e consciente. Pelo meu avô, que veio para cá aposentado e ainda trabalhou por 10 anos”, desabafa. “Eu fui privilegiado por ter sido criado pelos meus avós. Mas tenho cinco irmãos que passaram muita dificuldade, mas graças a Deus estão todos bem. Um deles catou muito resto de feira e hoje é dono de uma distribuidora de alimentos. Nunca recebeu subsídio (bolsa) de ninguém”, completa.
Para ele, o que falta ao povo é informação. “As pessoas têm muito acesso a comunicação, no entanto não conseguem filtrar o que está pronto. Alguém escreve alguma coisa, o outro propaga como se fosse verdade e aquilo se torna um vírus. Isso só mostra o quanto as pessoas precisam ler e compreender. O quanto precisam aprender a olhar para o próximo”.
Oito filhos e uma história
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Lenilde Rodrigues dos Santos, 63 anos, saiu de uma das comunidades mais pobres do interior de Sergipe, o Distrito de Malhadas, na cidade Jaboatã. Em fevereiro de 1978, em uma viagem longa, feita a bordo de ônibus e de trem, seguiu, com o marido, cinco filhos pequenos e uma sobrinha, em direção ao bairro Parque das Bandeiras, na Área Continental de São Vicente. Começava ali a história de uma grande família na Baixada Santista.
“A situação era muito difícil lá. Meu marido veio primeiro. Ficou quatro anos e meio trabalhando em Cubatão e depois foi nos buscar”, conta a dona de casa. Sozinha, com cinco crianças no sertão nordestino, ela se viu obrigada a trabalhar nas plantações de uma fazenda para sustentar a família. “Às vezes, trabalhava para ganhar um quilo de farinha. Quando chegava ia para o rio pescar para dar mistura para os filhos”, relembra.
A primeira moradia de Lenilde junto com o marido, em São Vicente, foi uma pequena casa de dois cômodos. Para ajudar o esposo, que é cozinheiro, a pagar o aluguel e manter as despesas da família, a dona de casa começou a vender roupas. “Minha sobrinha logo arranjou emprego e eu virei sacoleira”, conta.
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Em solo vicentino, o casal de migrantes teve mais três filhos. Ao todo são oito: Rosineide, Rosangela, Rosenilda, Josinete, Edmilson, Emerson, Enio e Maykon. Para criá-los, a matriarca não abriu mão de uma educação rígida. “Sou uma mãe dura, mas sempre pensando no bem deles. A criação de hoje é diferente. Se precisasse eu usava o galho da goiabeira”, afirma. “Sempre ensinei eles a ser um o apoio do outro. Dividir mesmo que for pouco”.
A vida do casal de migrantes começaria a melhorar quando saíram do aluguel e conquistaram a casa própria no conjunto residencial do Humaitá, que também fica na Área Continental de São Vicente. Eles foram um dos primeiros moradores do lugar, que foi entregue no final de 1983. “Tinha apenas três comôdos. Tudo isso fomos nós que construímos”, disse orgulhosa.
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Foi no novo bairro que a família de Lenilde construiu história. Muito ligados à Igreja Católica e aos movimentos sociais, fundaram a Associação Sagrado Coração de Jesus. Durante dois anos, com recursos próprios pagavam o aluguel de uma casa onde ofereciam à comunidade vários cursos, entre eles o de alfabetização. “Eu dava aula de artesanato”, destaca.
Lenilde casou cedo, aos 14 anos, e não teve a oportunidade de estudar. Analfabeta, porém uma firme incentivadora dos estudos — daquelas que brigam quando o filho tira nota vermelha — viu o caçula, Maykon, ser o primeiro membro da família de nordestinos a ter diploma universitário. “Com 16 anos, o meu filho foi fazer uma prova em Brasília. Não queria deixar ele ir. A gente tinha poucos recursos. O pai de uma coleguinha dele disse: minha filha tem professor particular. No fim, o meu filho passou e a dele não”, comenta.
Mas não foi na Universidade de Brasília (UNB) que Maykon ficou. O jovem, que sempre estudou em escola pública, queria um bom curso de História e foi na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Minas Gerais que ele foi parar — para desespero da mãe. “Longe da família com pessoas que não conhece, vai saber o que pode acontecer?! Só sosseguei quando vi que se passou dois anos e ele permaneceu firme no que queria. Foi um sacrifício, mas valeu a pena”, conta. No dia da formatura, as lágrimas nos olhos de Lenilde foram inevitáveis. A família saiu de São Vicente rumo a Minas Gerais, a bordo de uma van, para prestigiar o sucesso de um de seus membros.
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Prestes a completar 50 anos de casada, Lenilde olha para trás e se sente agradecida. Ela, que não gosta de salão de beleza e é devota de Nossa Senhora das Graças, vê na família sua maior e melhor razão de viver. “Agradeço a Deus todos os dias. Sou orgulhosa e feliz por ter criado oito filhos e todos serem unidos. Não foi fácil. Não é fácil. Mas com amor e carinho a gente consegue”, finaliza.
Migração na sala de aula
O professor de História Maykon Rodrigues dos Santos, o filho de Lenilde, leciona em escolas públicas de Santos e Cubatão. Segundo ele, a maioria de seus alunos é descendente de nordestinos. O prenconceito, observado nas redes sociais durante a semana, não foi sentido em sala de aula.
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“Durante a semana, os alunos perguntaram sobre o que achava do assunto. Conversamos sobre o tema, que já é algo que trabalho em sala de aula”, conta. O trabalho, chamado de Identidade, consiste em abordar com alunos do 6º e do 7º ano histórias de pessoas da própria comunidade. “Abordamos a migração ligada ao trabalho”.
O professor explica que, no 9º ano, a migração é abordada dentro da História do século XX. “Falamos sobre o conceito de república e o eixo migração nordestina a partir de 1950. Abordamos também os direitos sociais e individuais”.
Maykon destaca que o preconceito observado nas redes sociais tem relação cultural e histórica. “Ainda se tem o pensamento que os nordestinos impediram ou impedem o desenvolvimento de São Paulo. Quando na verdade, o Brasil não se desenvolveria sem a força dos migrantes e imigrantes. Esse pensamento tem relação com a condição social, e sempre vem à tona em períodos como a eleição. É preciso entender que uma sociedade é feita de forças diferentes”.
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De acordo com o professor, a internet, da mesma forma que amplia o acesso a informação, ajuda a disseminar pensamentos que, até então, se mantiam em ambientes restritos. “O mesmo preconceito que se tinha – e tem - com a empregada doméstica, de forma privada, é agora exposto nas redes sociais”, afirma.
Com relação ao preconceito nas eleições, ele dá exemplo dos países vizinhos. “No Brasil a ideia de excluído atinge pobres e nordestinos. Na Bolívia e no Equador os indígenas”.
Números
Na Baixada Santista, Cubatão é o município que, proporcionalmente, pode ser considerado o mais nordestino da região. Segundo o Censo de 2010, dos 118.200 habitantes, 31.234 são migrantes da região nordeste.
Guarujá é a cidade da região com o maior número de migrantes nordestinos – 57.805 no total.
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