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São Paulo, 1930. Um boato transformaria para sempre a vida de uma família de classe média alta paulistana. As duas irmãs lembram com riqueza de detalhes o que gostariam de esquecer. Órfãs de pais vivos, perderam a infância para o preconceito e o desconhecido. Muitas décadas depois, elas ainda buscam respostas para o que aconteceu.
“Pegaram o meu pai no trem. Disseram que ele tinha lepra. Depois inventaram que a minha mãe estava traindo o meu pai e que ela também tinha a doença. A polícia sanitária levou os dois e separou a gente. A minha família foi separada por causa de boato. Era só falar que era leproso e eles levavam. A minha família não tinha hanseníase”, disse Elly Sbrajia, de 82 anos.
Elly tinha apenas dois anos quando tudo aconteceu. Caçula de quatro irmãos, ela foi tirada dos braços da mãe e levada para o Orfanato Santa Terezinha junto com a irmã Odete, já falecida, na época com cinco anos. A irmã Ruth Sbrajia, de 90 anos, que também conversou com o Diário do Litoral, e o irmão João, falecido, na época com quatro anos, foram levados para o Hospital Padre Bento, que abrigava os doentes.
“Minha irmã tomava conta de mim. Ela contava que a madre molhava a ponta do lençol para eu ficar chupando. Não sabia o que era ter mãe. Não tive infância. Fui órfã de pais vivos. Tudo o que fazia no orfanato era com a Odete. Não fui para a escola. Aprendi o básico. Eu chorava porque queria a minha mãe. Ninguém contava para nós o porquê que fomos parar lá”, conta Elly emocionada.
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A hanseníase era considerada um problema nacional naquela época. Causada pelo Mycobacterium Leprae, que atinge os nervos e se manifesta na pele, a doença não tinha cura. O medo do contágio aliado ao desconhecido levou milhares de pessoas ao enclausuramento em hospitais e colônias, chamados leprosários, espalhados pelo Brasil (alguns existem até hoje). O preconceito era presente na vida de portadores e de seus familiares, ainda que esses não tivessem a doença.
“Lembro de uma fila onde eles estavam cortando as meninas com a tesoura. Me cortaram também, mas eu não tinha a doença e senti tudo. Foi horrível”, disse Elly. Uma das características da hanseníase é a falta de sensibilidade. Os cortes eram feitos para identificar se a pessoa era portadora da doença.
Elly contou que o pai viveu no hospital e lá acabou contraindo a doença. A mãe passou a ter que cuidar dele. A irmã Odete foi a primeira a deixar o orfanato. Ela saiu aos 16 anos. “Voltei a morar com a minha mãe no Bráz. Com a carteira de trabalho arrumei um emprego em uma fábrica de lingerie como cortadeira” contou.
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De volta às ruas, Odete conheceu o preconceito. “Bastava falar que o meu pai era doente para se afastarem. Escarravam quando a gente passava. Quando conheci o meu marido contei para ele. Ele entendeu. No nosso casamento tive que falar para os convidados que o meu pai havia sido queimado com ácido (ele era artesão). Ele foi ao casamento, mas não se sentia bem perto das pessoas porque aprendeu a viver sozinho por causa do preconceito. Ele se retirou em um canto. Ficou só um pouco e depois foi embora”, lembrou.
Com ele, Elly teve um filho para o qual nunca contou o que havia acontecido com a família. “Meu filho morreu sem saber de toda a história. Sofri calada. Ele nunca soube que o avô teve hanseníase. Contei há pouco tempo para os meus netos”, disse.
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Até hoje Elly não se conforma com o que aconteceu. “Não tive mãe. Não tive pai. Não tive ninguém. Quando vim saber tudo o que aconteceu com a minha família, que foi destruída, separada por causa de um boato, eu chorei muito. Choro até hoje tentando entender porque fizeram aquilo. Não era só eu e a minha irmã. Muitas crianças foram separadas de seus pais por causa da hanseníase”. Ela, a mãe e os três irmãos nunca tiveram a doença.
‘Não sei o que é carinho’
Ruth é a irmã mais velha de Elly. Elas se conheceram apenas no final da adolescência. O vínculo familiar foi criado com o tempo. Diferente da irmã caçula, que foi criada em orfanato, ela cresceu em um hospital e as lembranças são ainda mais duras. Na pele enrugada pelo tempo também há marcas dos cortes feitos a sangue frio.
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“Meu número era 88 por causa da roupa. Eu não era chamada pelo nome, era conhecida pelo número. Fiquei internada em um hospital sem ter a doença. Muitas vezes tive que fingir estar machucada para não apanhar.
Apanhava de estranhos. Eles pegavam a tesoura, levantavam a pele cortavam a sangue frio. Me cortavam para saber se eu tinha a doença”, disse Ruth ao mostrar as marcas no corpo.
Ruth saiu do hospital aos 11 anos. Contou que foi retirada do local pela avó paterna que a obrigou a trabalhar. “Sai de lá para trabalhar e dar dinheiro para ela. Fui pajem e empregada. Não tive carinho. Não faço carinho em ninguém porque nunca recebi carinho. Fui criada como bicho. Davam água e comida e só. Não tenho boas recordações”, recordou.
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O marido ela conheceu aos 19 anos. Com ele casou e teve três filhos. “Ele não teve preconceito. Acho que casei para me livrar daquela vida e tentar esquecer tudo o que passei”.
Sem documentos
A filha de Ruth, a professora Sandra Velozo, tenta resgatar a história da mãe e da tia. As duas saíram das unidades onde cresceram sem as certidões de nascimento. Conseguiram a carteira de trabalho com a certidão de batismo.
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“A história dessas pessoas, como a de minha família, não está registrada. Fomos buscar os documentos delas. Alguma ficha que possa conter as informações de seu passado, mas ninguém sabe onde está. Nem mesmo o Estado possui registrada essa história tão terrível que aconteceu no Brasil”, disse a professora.
“O Estado precisa reparar o que fez. Queremos os nossos documentos. O que aconteceu no Brasil foi pior que o holocausto. Quantas pessoas como eu não tiveram o carinho de seus pais. Hoje dou para a minha bisneta o carinho que eu não tive. É preciso que todo mundo conheça essa história para que não se repita mais”, afirmou Elly.
“Queria que dessem os documentos. Choro até hoje pela tristeza de ter tido o carinho do meu pai e da minha mãe. Acordo de madrugada querendo saber o que aconteceu. Choro e me pergunto: por que a minha família foi destruí- da?”, disse Ruth.
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A história da hanseníase
A hanseníase, popularmente conhecida como lepra, é uma doença da mais remota antiguidade. Conhecida há mais de três ou quatro mil anos na Índia, China e Japão, já existia no Egito quatro mil e trezentos anos antes de Cristo. A doença chegou ao Brasil com os primeiros colonizadores portugueses.
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Por muitos anos os poderes públicos tomavam conhecimento do progresso da endemia no País. A assistência ao doente ficava a cargo da caridade pública. A única medida posta em prática era o asilamento dos doentes, sendo a sua manutenção feita por instituições particulares. Nos arredores de cidades e vilas alojavam-se doentes que, em determinados dias da semana saíam para mendigar. Outros viviam em barracas e levavam vida nômade, esmolando ao longo das estradas.
Na década de 1920, a fim de combatê-la, foi criada a Inspetoria de Profilaxia e Combate à Lepra e Doenças Venéreas. Entre 1930 e 1945, a Inspetoria foi extinta e a política nacional de enfrentamento à doença desarticulada. Com isso, o isolamento compulsório aumentou significativamente. Em 1942, o Serviço Nacional de Lepra informava a existência de 16.019 internados em 33 leprosários.
Os portadores da doença que, até a década de 70, eram excluídos do convívio social e condenados ao confinamento em colônias, hoje recebem remédios de graça e se tratam em casa, com acompanhamento médico nas unidades básicas de saúde.
A doença
A hanseníase é transmissível através da respiração e o contágio tem algumas características especiais. A pessoa, com a doença, sem tratamento e na forma transmissível da doença e um convívio prolongado com esse indivíduo. Tão logo seja iniciado o tratamento a doença deixa de ser transmissível. Ninguém que tenha a doença precisa se afastar da sociedade, nem deixar de trabalhar ou ficar perto de sua família. Os sinais e sintomas da hanseníase estão localizados principalmente nas extremidades das mãos e dos pés, na face, nas orelhas, nas costas, nas nádegas e nas pernas. A doença tem cura e o tratamento dura, em média, entre seis meses e um ano.
Mais de 10 mil filhos separados no Brasil
O Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) realizou um levantamento sobre o número de filhos separados do convívio de seus pais, em função da política de isolamento compulsório para pessoas com hanseníase nas décadas passadas. Segundo as informações preliminares obtidas pelo grupo, existem atualmente no Brasil 10 mil pessoas nessas condições. No entanto, esse número pode ser bem maior.
“Disponibilizamos um formulário e, de dados concretos, temos 10 mil pessoas. Mas a projeção é de 25 mil. O Governo estima que o número seja 40 mil”, disse Artur Custodio, coordenador nacional do Morhan. O grupo busca a indenização para essas pessoas. “É preciso que haja o reconhecimento de crime do Estado e, a partir do reconhecimento, as indenizações”.
O Morhan pretende realizar em novembro o Encontro de Filhos Separados, em Brasília. A data ainda não foi definida.
Amanhã (24), o Diário do Litoral publica matéria sobre a história e ações do Morhan.
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