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As marcas da violência estão espalhadas pelo corpo da professora Simone Gonçalves Elorriaga, de 47 anos. No quadril, as surras que levou do pai quando criança. Nos braços, as crises do ex-marido viciado em crack. Na mente, a vontade de esquecer tudo o que passou e seguir em frente com a nova vida.
“Meu pai me batia muito. Morávamos em Ribeirão Preto. Era a filha mais velha. Lembro do dia que não fui para a escola de óculos - usava aquele ‘fundo de garrafa’ - e ele descobriu. Me deu a surra que um dia prometeu que jamais eu iria esquecer. Fazia xixi nas calças de tanto apanhar”, contou Simone. O ambiente familiar era violento. “Cresci vendo o meu pai bater na minha mãe”.
O pai de Simone tinha um bar. Humilhava a filha na frente dos amigos e a fazia trabalhar ainda criança ter suas coisas. ”Comecei a fazer faxina aos 12 anos para ajudar em casa. Meu pai dava presentes bons para os meus irmãos (três duas mulheres e um homem) e para mim era sempre ruim.Nunca tive uma boneca. As que tive a minha mãe que fazia com palha de milho e me dava com dó. Meus vestidos eram de pano de chita quando os das minhas irmãs eram melhores. Nunca entendi o porquê que o meu pai me tratava assim”, relatou a professora.
Simone foi matriculada em um colégio de freiras. Estudava de dia e ia para casa à noite. Foi lá que aprendeu o artesanato que muito lhe ajuda nos dias de hoje. Seu pai fugiu de casa com uma mulher. A família passou fome. Anos depois, ele voltou. Já não era mais o mesmo. “Teve trombose e precisou amputar as duas pernas. Eu, a filha excluída, cuidei dele até a morte”.
Aos 19 anos, Simone conheceu o seu primeiro marido. Ficou grávida e logo casaram. Com ele teve quatro filhos - três meninas e um menino. “Ele foi maravilhoso para mim. Era o pai que não tive. Voltei a estudar. Fiz Magistério. Ele é um grande amigo, até hoje”, disse a professora. “Nos separamos porque eu não tinha nada na cabeça. Ouvi os conselhos de uma amiga e decidi largar ele. Fui embora com as crianças e pagava aluguel com o dinheiro da pensão”.
Em uma festa de peão, Simone conheceu o segundo marido. “Ele era músico. Estava tocando. Ficamos nos olhando. Era lindo. Eu disse ‘é o homem da minha vida’. Começamos a namorar e não demorou muito já estávamos morando juntos”, contou.
Com ele conheceu Praia Grande. O músico tocava em uma casa de shows da Cidade. Mudaram-se para o município do litoral paulista. Ficou grávida do primeiro filho do relacionamento. Voltaram para Ribeirão Preto. A criança nasceu com hidrocefalia e morreu ao completar um ano. “Não me conformava com a perda. Eu tinha meus quatro filhos, mas queria um dele. Achava que se eu não tivesse ele iria me abandonar e eu ficaria sozinha para o resto da minha vida”, disse. Três meses depois ela já estava grávida novamente.
Deixou os filhos pequenos com o pai em Ribeirão. O primeiro filho que teve com o músico nasceu saudável. Mudaram para Praia Grande novamente. Veio o segundo filho do relacionamento. A vida aparentemente tranquila já não seria mais a mesma. “No começo era maravilhoso, mas descobri que ele estava usando crack. Acho que sempre usou drogas e eu não tinha noção. Fazia muitos shows e eu nunca me toquei”.
A vida de Simone virou um inferno. O marido, que até então era sossegado, ficou agressivo. Vieram as primeiras surras, com elas os primeiros boletins de ocorrência.
“Eu não podia falar nada e ele já me batia. Colocava meus filhos para assistir eu apanhando. As coisas da minha casa começaram a sumir. Vinha gente cobrar ele em casa. O dinheiro da música já não dava mais pra nada. Fiz marmita para fora e ele pegava o dinheiro. Um dia ele chegou com crise e eu estava dormindo. Acordei na hora que ele tentava se jogar da janela na frente dos meus filhos. Meus filhos achavam que aquela vida de agressão era o normal de uma família”, relatou.
Cansada de apanhar e de ver os filhos em risco, Simone decidiu se separar. Voltou para Ribeirão Preto para morar com a mãe. O sossego durou pouco. Logo surgiram as ameaças a ela e aos filhos, que eram agredidos durante as visitas autorizadas. Com medo de que o ex-marido, alucinado, concretizasse as promessas, pegou os filhos e com a mãe novamente foi para Praia Grande. Dessa vez sem destino e com apenas uma mala de roupas. “Dormimos no banheiro do Terminal Tatico. Um guarda municipal abençoado viu a nossa situação e deixou que a gente ficasse lá até abrir o terminal de manhã. Andamos pela rua dois dias. Pedi comida em restaurante para os meus filhos. Consegui alugar um barraco em uma favela para pagar quando a minha mãe recebesse a pensão. Por muitas vezes, tentei me atirar nos carros que passavam na pista. Já não tinha mais vontade viver”, contou com os olhos cheios lágrimas. o ex-marido descobriu o seu telefone e ainda continuava as ameças.
Simone conheceu o seu atual marido. Comovido com a situação dela e das crianças, que o chamam de pai,ele a ajudou. A professora começou a vender artesanato e camarão nas praias. Um tempo depois, uma ligação de Ribeirão Preto lhe informaria o paradeiro do ex-marido. “A mãe dele disse que ele havia se matado. Já não aguentava a pressão dos traficantes que iam cobrar as dívida se o ameaçaram de morte. Preferiu se suicidar. Disse que antes ele pediu perdão de tudo o que fez para mim e aos meus filhos”.
No ano passado, Simone foi contemplada em um programa habitacional da Prefeitura. Leva uma vida humilde, mas já consegue sorrir e seguir a vida. Conheceu uma ONG no bairro onde mora e atualmente presta serviço voluntário. Ensina o artesanato que aprendeu no colégio de freiras. Seu sonho é palestrar para mulheres que sofrem violência doméstica. “Olho para trás e não acredito que passei por tudo isso e sobrevivi. Parece que eu acordei de um coma. Quero que outras mulheres tenham coragem. Não desistam. A gente tem medo, é lógico, mas se a gente não fizer nada, nada vai mudar. Eu não tive infância, mas hoje tenho as minhas bonecas.Eu lutei sozinha. Fui pai e mãe dos meus filhos. Eu achava que o homem era a base de tudo. Hoje eu sei que posso viver sozinha. Hoje sou feliz e tenho até medo morrer”.
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