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A máquina fotográfica chama a atenção das crianças. Os pequenos índios da aldeia Piaçaguera, em Peruíbe, brincam no pátio da escola da comunidade quando o repórter fotográfico Matheus Tagé inicia a sessão de fotos. Curiosos, os meninos e meninas fazem perguntas. Minutos depois, com o equipamento em mãos, eles registram imagens daquele momento. A interação entre as culturas jurua (não-índio) e indígena é discutida em ambiente escolar. Naquela terra, o lema é avançar sem perder as tradições.
“A gente vai ensinando as crianças que tem que pegar a cultura do branco, mas não pode esquecer a nossa cultura. Eu não digo que é um resgate, porque não se perdeu, é um fortalecimento. A gente precisa fortalecer a cada dia, pois a cultura do branco está muito inserida. Dá para conviver com o celular e a internet, mas pegar as coisas boas porque tem muita coisa ruim também”, disse a professora Lilian Gomes Fernandes. Formada em Letras, ela leciona na escola indígena da aldeia de Piaçaguera, onde também reside. A unidade atende cerca de 50 crianças.
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O fortalecimento da cultura é destacada na aldeia Piaçaguera, formada há 15 anos, e composta por índios tupis-guaranis. A comunidade é uma das sete que integra a Terra Indígena, que leva o mesmo nome e ocupa 2.790 hectares no Município.
A área foi declarada terra indígena pela Funai em 2011. No entanto, o processo de demarcação ainda não foi concluído, e a região também é ocupada por pessoas não indígenas. Para chegar até a aldeia Piaçaguera, que fica próxima a praia, é necessário percorrer um longo de terra e vegetação. Peruíbe conta ainda com outra aldeia: a Bananal.
Catarina Delfina dos Santos (Nimbopürua), 64 anos, nasceu na aldeia Bananal. Aos sete anos foi morar com os pais em São Vicente. “Eles disseram que queriam uma filha ‘civilizada’”, disse. Ao todo eram nove irmãos. Aprendeu a plantar, fazer artesanato, trabalhou em casa de família e em escritório. Casou e teve quatro filhos. Há 15 anos, foi linha de frente da ocupação da aldeia Piaçaguera, onde se tornou a primeira mulher a assumir o posto de cacique na Região.
“Foi muito difícil conviver com uma cultura diferente. Tive muita dificuldade. Mas tive muito conhecimento. Quando voltei e me tornei cacique fez com que soubesse reinvindicar. Pedi a escola e muitas outras coisas que muito sacrifício nós conseguimos”, contou Catarina.
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Em 2006, Catarina e outros 80 indígenas do Estado de São Paulo se formaram no curso de Pedagogia da Universidade de São Paulo (USP). Ela e a filha, Fabíola, que atualmente é a vice-diretora da escola indígena de Piaçaguera, receberam o diploma na mesma cerimônia.
“Fui educada na casa de reza como se deve se comportar, se aconselhando com os mais velhos. Há a necessidade das crianças frequentarem a casa como era antigamente. Estar em contato com nhaderu (Deus). Mas também é muito importante que o índio não deixe de estudar. Que busque o conhecimento e que entendam das leis”, destacou a indígena. Devido à ação do tempo, a casa de reza da aldeia foi ao chão.
A casa de reza é um local utilizado pelos índios para a realização de rituais religiosos, e para o fortalecimento da cultura e tradições.
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Lideranças
O posto de cacique não existe mais na aldeia de Piaçaguera. As decisões da comunidade são tomadas por um grupo de lideranças. O jovem Diego Silvano Mariano (Awa Weradju), de 23 anos, compõe o colegiado. Para ele, ouvir os mais velhos é essencial.
“Lutamos para melhorar a nossa comunidade e continuar as nossas tradições. O apoio dos mais velhos, principalmente na escola é fundamental”, disse Mariano. O jovem trabalha nos serviços de saneamento básico da aldeia e vende orquídeas na feira.
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O meio de subsistência dos índios de Piaçaguera está no cultivo de orquídeas, venda de palmitos e artesanato. Uma horta cultivada ao lado da escola, que também conta com funcionários e professores da comunidade, ajuda na alimentação escolar. Ao contrário da aldeia de Paranapuã, em São Vicente, retratada ontem no Diário do Litoral, onde as casas são feitas de barro e pau, as habitações da aldeia de Peruíbe são de alvenaria e a maioria das casas conta com rede de esgoto, água encanada e luz.
Preconceito
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Um dos principais problemas enfrentados pelos indígenas é o preconceito. Fora da aldeia é tarefa conviver com esse tipo de postura se ser afetado, o que muitas vezes é difícil e torna a vida externa ainda mais penosa.
“A gente sofre muito preconceito. Somos hostilizados. O pessoal vê a gente vendendo orquídea na feira ou palmito já fala que estamos acabando com a natureza. Um dia desses sentados no bar tomando refrigerante, do lado da feira, me chamaram de vagabundo. Eu disse que quem acabou com a natureza foram eles, que não sabem respeitar a cultura e as diferenças”, disse Mariano.
O jovem líder indígena cursou até a oitava série do Ensino Fundamental. O contato com o Ensino Médio não lhe traz boas lembranças, tanto que parou. “Me humilhavam porque não tinha roupa bonita. Não entendia muito dessas coisas. Falavam que eu era índio fedido”.
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O problema vivenciado por Mariano é destacado pela professora Lilian. Segundo ela, muitos índios abandonam os estudos por causa do preconceito.
“São poucos que saem para buscar conhecimento porque a dificuldade lá fora é muito grande. O preconceito é muito grande. Aqui tem até o 9º ano, depois eles vão para fora. Aqui eles andam livres e entram para estudar às vezes só de cueca. Lá fora eles vão ver um tênis, uma roupa de marca e a molecada de lá tira sarro porque eles vão simples. Muitos desistem. Não conseguem concluir. Os que conseguem trazem conhecimento para a aldeia”, disse a docente.
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Visitação
A aldeia Piaçaguera abre as portas para visitação. Visando o potencial turístico, que é trabalhado em aldeias de outras regiões do País, a comunidade desenvolve projeto que recebe estudantes e grupos.
As visitas, que devem ser agendadas, incluem almoço, apresentações culturais e conversas sobre a cultura indígena. É cobrada uma taxa, que será revertida para benfeitorias na escola da aldeia. Mais informações pelo telefone (13) 99602-6977 ou pelo email [email protected].
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As fotos registradas pelas crianças da aldeia com a máquina fotográfica do Diário do Litoral estarão disponíveis em uma galeria no site do jornal: www.diariodolitoral.com.br.
Os impactos da mineração e a falta de demarcação
Apesar de Piçaguera ter sido declarada oficialmente terra indígena, a área ainda aguarda pela demarcação. A demora na oficialização tem causado problemas à comunidade, que sofre com invasões, a ocupação de não-índios e os impactos causados por mais de 50 anos de atividade minerária no local, que modificou o solo.
“A terra está demarcada, mas não se chega ao final do processo de demarcação da terra indígena. Têm muitos posseiros dentro da terra e que precisam ser retirados. Entram indevidamente sem nenhuma autorização. Já faz muito tempo, nessas áreas, tinha uma mineradora, que ainda ocupa certo espaço e que terá de ser retirada quando o processo de homologação da terra indígena terminar, que explorava areia, e causou danos muito sérios a terra indígena”, explicou Otávio de Camargo Penteado, assessor de programas da Comissão Pró-Índio, organização não-governamental que acompanha a situação de Piaçaguera há alguns anos.
Ele destacou que o comprometimento do solo desfavorece atividades voltadas a agricultura. “É possível plantar coisas, mas exige um conhecimento e um trabalho muito particular por causa da mineração. Tem que trazer terra de outros lugares. A gente acompanha a questão da mineração com eles há um bom tempo com diálogos com a Funai e o Ibama, e isso precisa de mais conversa para que esse minerador faça essa recuperação”.