Cotidiano

Especialistas alertam: usina de lixo pode contaminar a água de Guarujá

Cava da Pedreira, que poderá ser reservatório, está somente a 1,2 km de futura Unidade de Recuperação de Energia

Carlos Ratton

Publicado em 04/09/2021 às 07:00

Atualizado em 06/09/2021 às 10:56

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O Governo do Estado de São Paulo já anunciou a licitação para construção do reservatório aproveitando a Cava / Nair Bueno/DL

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O Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou resolução reafirmando as obrigações dos países de adotarem ações mais fortes sobre os desafios ambientais. Além disso, a Constituição Brasileira preconiza que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

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Pois, em Guarujá, existe possibilidade real de milhares de pessoas, boa parte crianças com o organismo ainda frágil e em formação de, em um futuro próximo, perderem o direito constitucional ao consumirem água carregada de toxinas que, em pouco tempo, gerariam inúmeras doenças degenerativas, incluindo câncer.

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Isso porque, apesar do alerta de dezenas de ambientalistas e especialistas, a menos de 1,2 quilômetro da conhecida Cava da Pedreira, projetada para ser um reservatório de água potável, com capacidade de armazenar três bilhões de litros, será implantada uma Unidade de Recuperação de Energia (URE) que, em seu processo de combustão, deverá gerar resíduos tóxicos que vão atingir inevitavelmente o reservatório gigante, localizado às margens no quilômetro 252 da Rodovia Cônego Domênico Rangoni.

O Governo do Estado de São Paulo já anunciou a licitação para construção do reservatório aproveitando a Cava. O uso dela como reservatório de água é um sonho antigo.

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A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) pretende resolver o problema de desabastecimento de água em Guarujá, algo recorrente em períodos de estiagem (inverno) e, na temporada de verão, por conta do aumento da população flutuante.

Já a URE, de responsabilidade da Valoriza Santos SPE Ltda - empresa oriunda da junção das empresas Terrestre Ambiental e Terracom (responsáveis pela limpeza urbana e tratamento do lixo doméstico da região) - teve aval do Conselho de Meio Ambiente do Estado de São Paulo (CONSEMA).

O órgão rejeitou, no último dia 25, um documento com 145 assinaturas de entidades, vereadores e deputados que pediam o adiamento da apreciação para maior discussão do projeto e aprovou parecer da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) favorável a sua implantação.

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APROVARAM SEM LER.

Além da aprovação do CONSEMA, a URE ainda conta com a 'falta de atenção' da Câmara de Santos que, recentemente, aprovou a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2022, publicada no Diário Oficial do Município (DOM), trazendo posicionamento antagônico em relação ao recolhimento e tratamento de resíduos sólidos gerados no Município.

Os vereadores não atentaram que, em seu artigo 10, a legislação assegura que o Município estabeleça, em seu orçamento anual, percentuais de receita para investir em fontes sustentáveis de energia e destinação de resíduos sólidos, proibindo o uso de incineradores para a destinação do material gerado em Santos (página 277 do DOM).

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Por outro, em sua página 285, permite que a Cidade estude e implante novos sistemas de tratamento e disposição final de resíduos sólidos, envolvendo uma URE na área continental do Município, mediante todas as condicionantes ambientais. Para os ambientalistas, a URE é uma usina incineradora de resíduos.

A Reportagem obteve informação que inúmeros estudos apontam que emissões de poluentes provenientes das chaminés dos incineradores podem chegar a três quilômetros de distância.

Portanto, além da Cava da Pedreira, áreas de preservação permanente, rios, mangues, águas do estuário de Santos e mananciais de abastecimento público podem ser também afetados.

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A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 23% de todas as mortes estão ligadas a "riscos ambientais" por contaminação da água, ar e exposição a produtos químicos.

Portanto, os ambientalistas acreditam que a incineração e o armazenamento de água na distância curta entre uma e outra atividade seriam inviáveis.

No caso da URE, o MP-SP já avaliou previamente afrontar o Estatuto das Cidades a Política Nacional de Resíduos Sólidos.

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Especialistas da Baixada alertam para os perigos da aproximação

O técnico em Meio Ambiente, Jeffer Castelo Branco, graduado em Serviço Social, mestre e doutorando em Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), garante que a água do futuro reservatório (Cava) será atingida por difenil-éter polibromado (PBDE), hexaclorobenzeno (HCB), bifenila-policloradas (PCBs), dioxinas e furanos, além de partículas finas e ultrafinas inaláveis que não são totalmente retidas pelos filtros modernos.

"E mesmo que fosse possível, estaríamos apenas removendo do ar e enviando para aterros perigosos, criando mais passivo tóxico para as futuras gerações. As partículas ultrafinas também podem carrear estes agentes nocivos e alcançar a corrente sanguínea através do sistema respiratório, onde determinadas substâncias biopersistentes se bioacumulam no tecido adiposo ou atingem órgãos, sobretudo hormônios dependentes e outros sistemas do corpo humano, como por exemplo: o endócrino, neurológico, nervoso central e periférico, cognitivo, cardiorrespiratório, reprodutor, causando alterações genéticas e o câncer".

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Membro da Frente Ambientalista da Baixada Santista - formada por dezenas de técnicos e entidades ligadas ao meio ambiente - e diretor da Associação de Combate aos Poluentes (ACPO), Branco tem convicção que uma URE jamais poderia ser instalada próxima a mananciais de água bruta, sendo mais uma rota e fonte de exposição, o que potencializa os riscos de intoxicação, uma vez que os sistemas de tratamento de água convencional não retêm essas substâncias, e mesmo que fossem capazes, estaria se criando apenas mais uma outra fonte de passivo tóxico.

"Estudos revelam que os incineradores são capazes de inviabilizar toda a produção de alimentos que estão na sua área de influência: hortas, animais de corte, leite e ovos. E em função de uma legislação e de uma capacidade técnica e tecnológica insuficiente, coloca o meio ambiente e as pessoas nas áreas de influência à mercê da sorte, o que se revela uma incoerência ambiental e de saúde sem limites em pleno século 21", finaliza.

CONTRADIÇÃO.

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Durante a reunião do CONSEMA, outro especialista, o professor universitário Élio Lopes, junto com o também professor Célio Berman, manifestou preocupação quanto aos impactos negativos da URE e a "contradição na escolha dessa alternativa tecnológica obsoleta, em desacordo com a necessidade de buscarmos rotas sustentáveis para a gestão dos resíduos sólidos", apontou.

Mestre em Engenharia Urbana (com ênfase em poluição do ar), químico, engenheiro industrial, pós-graduado em Engenharia de Segurança do Trabalho e de Controle de Poluição, ele lembra que, em 7 de março de 2018, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) apresentou o plano de gestão integrada de resíduos sólidos da Baixada Santista com 12 opções de combinações de tecnologias para tratamento do lixo local.

"Após várias discussões durante a audiência que contou com a presença dos representantes de universidades, e da sociedade organizada e até mesmo do Ministério Público, a opção de incineração constante no relatório do IPT foi severamente rechaçada, pois se trata de um processo anacrônico, de alto custo e riscos associados à geração de poluentes perigosos".

Para Lopes, a URE é a pior alternativa indo contra a Lei Nacional de Resíduos Sólidos que prevê a implantação de processos de valorização do lixo e proteção ambiental com processos reciclagem e políticas de redução da geração de resíduos.

SEM DISCUSSÃO.

O diretor do Instituto Maramar, Fabrício Gandini, alerta que a questão URE/Cava não foi discutida no Comitê de Bacias Hidrográficas da Baixada Santista (CBH-BS), responsável por definir analisar projetos e elaboração das políticas para gestão das águas nas bacias, sobretudo em regiões sujeitas a eventos críticos de escassez hídrica, inundações ou na qualidade da água que possam colocar em risco os usos múltiplos dela.

"A comissão de análise de empreendimento deveria ter se reunido e criado condicionantes ambientais para um empreendimento de queima de lixo. Isso não foi feito e o colegiado está omisso nesse processo".

Gandini revela que o Conselho Regional de Recursos Hídricos dispõe de uma normativa dando poder aos comitês interferir nos processos de licenciamento e recomendar condicionantes, "o que não foi feito até agora. Se o comitê que protege as águas não se posiciona, quem o fará?", finaliza. O CBH-BS não se manifestou.

VALORIZA.

A Valoriza explica que o futuro projeto da Sabesp foi avaliado quanto a sua compatibilidade pela empresa e incluiu potenciais impactos quanto a captação e qualidade da água superficial, cujo resultado demonstrou que não haverá impactos no reservatório de água bruta da Sabesp devido à operação da URE.

"Como não haverá captação de água superficial pela URE que pudesse competir com a vazão a ser captada pela Sabesp e nem haverá lançamento de efluentes em corpos d´água que pudesse interferir com a qualidade da água a ser captada, do ponto de vista de recursos hídricos, não haverá interferência de nenhum tipo entre a URE e o reservatório.

Em relação a emissões atmosféricas, o estudo comprovou que a "Avaliação de Risco à Saúde Humana por exposição a emissões atmosféricas não intencionais de Dioxinas & Furanos", indicou que no leito do Rio Jurubatuba, a concentração será de apenas 0,27 % da "Dose Diária Tolerável" (2,3 pg/m3), concentração muito abaixo da dose de segurança que é estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS)". (Carlos Ratton)

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