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Domingo, 6 de fevereiro de 2003. A vida da representante comercial Rosana Pauzer, de 47 anos, mudaria a partir dessa data. Não sabia ela que um silencioso pedido de socorro e uma paixão à primeira vista a tornaria algo que estava, por opção, descartado: ser mãe.
“Eu conhecia a pobreza, sempre fui pobre, mas não conhecia a miséria. A situação deles era muito precária. Vários colchões na sala e muitas crianças. Não tinham alimentos. Levamos doces, pirulitos, bolacha, mas eles precisavam de mais. Juntamos todo o dinheiro que tínhamos e fomos ao supermercado comprar mantimentos. Chorei com o que vi”, contou a representante comercial. Água com açúcar era o cardápio oferecido aos menores, tamanha pobreza a qual viviam.
Rosana integrava um grupo que realizava trabalho voluntário desde 2000 junto ao Lar de Assistência ao Menor de São Vicente (LAM). Na entidade conheceu três irmãos que voltaram a morar com a mãe, em um bairro da Área Continental de São Vicente. A mãe, usuária de drogas, vivia em condições precárias. “Dois dos irmãos estavam em idade escolar. Decidimos nos juntar e levar material para eles. Eram, ao todo, nove, entre crianças e adolescentes, na casa”, disse.
Enquanto o grupo conversava com a mãe das crianças, outros dois bebês (gêmeos) surgiram sem fraldas. Um deles chamou a atenção de Rosana. “Ele se arrastava no chão. Tinha 11 meses. Não chorava. Miava como gato. Vi que não era normal. Ele fazia um barulho de sofrência. Peguei ele no colo e senti que estava febril”, lembrou Rosana.
A representante comercial voltou para casa com aquele menino na cabeça. “Fui visitar meu pai que estava internado no hospital. Quando voltei liguei para a minha irmã que havia ido a casa deles comigo e disse ‘se eu voltar no domingo esse bebê terá morrido’. O olhar dele me pedia ajuda. Acho que foi amor à primeira vista”. No mesmo dia à noite, Rosana entrou em contato com a mãe da criança e perguntou se poderia levar a criança no hospital. “Abri um saco grande e comecei a colocar coisas que tinha em casa. Leite, achocolatado, o que tinha na despensa para levar para aquelas crianças, arranjei uma carona e fui. Ela autorizou a levar o Lucas para minha casa”, disse.
Antes de ir para casa, Rosana passou em um hipermercado para comprar roupinhas de bebê e fraldas. A febre não cessou e, no dia seguinte, logo cedo, ela levou a criança a uma unidade de saúde. “Os médicos foram todos em cima dele e pediram rapidamente a transferência para o hospital Guilherme Álvaro. Ele estava com desnutrição profunda, desidratação e infecção intestinal grave. Precisou de transfusão de sangue. A situação dele era muito delicada. Os médicos disseram que se ele não fosse socorrido seria questão de dias para que ele morresse”, lembrou emocionada.
A família e os amigos de Rosana a apoiaram e ajudaram a cuidar do menino, que ficou uma semana internado. “Ele ganhou muitos presentes. O corpo médico se sensibilizou com a situação dele. Ele não conseguia nem sentar. Um médico residente disse ‘pelo amor de Deus não deixe essa criança voltar para casa da mãe. Ela precisa de cuidados. Precisa de muito amor e carinho’. Disse ‘eu não sou mãe dele preciso devolver’”.
O pequeno Lucas recebeu alta médica. Rosana o levou para casa. Ela morava apenas com o pai e trabalhava. Na época tinha 35 anos. A irmã e a cunhada se revezavam para cuidar do menino durante o dia. A rotina de antibióticos e alimentação era rigorosa. “Veio o carnaval e fiquei com dificuldades para quem olhasse ele. Fui conversar com a mãe para que ela ficasse. Levei o leite e alimentação que ele precisava esperando que os cuidados continuassem. Mas não”, disse.
Uma semana depois, Rosana foi buscar o menino. O cenário que se deparou foi ainda mais deprimente. “A família toda estava com sarna, inclusive o Lucas. Tive pena daquelas crianças. Ele olhava para mim com olhar ‘você me abandonou’. Me senti culpada. Ali eu vi que não poderia mais abandonar ele. Eu não queria mais devolver o Lucas. Mas eu trabalhava e morava com o meu pai. Já fui casada e nunca pensei ter filhos. Já tinha meus sobrinhos. Sempre fui independente. Academia, inglês, balada. Não me via com um filho”, relatou. Depois desse dia, a criança jamais voltou a morar com a mãe biológica.
Mesmo com o apoio da família, a representante comercial sentiu resistência. “Todo mundo falava você não tem problema, vai arranjar problema dos outros para você. Dizia ele não é problema é a solução para a minha vida”, destacou Rosana. “Meu pai falou: você vai ficar com ele. Você é a mãe e eu sou o pai. Eu ajudo. Não quero mais que devolva essa criança”, contou emocionada. O pai de Rosana faleceu há cinco anos.
Rosana passou a se dedicar ao pequeno Lucas, que ficava passava o dia na escolinha, enquanto ela trabalhava. A mãe do menino lhe concedeu a guarda provisória da criança. A relação entre as duas era cordial. Os cuidados médicos eram rigorosos devido à sequelas da desnutrição severa. “Era tudo especial. Meu salário ia todo para ele. Minha vida mudou. O primeiro aniversário dele foi comigo. Eu precisava criar vínculo com ele. Como não amamentei, ao tomar banho o colocava abraçado em meu colo e falava que o amava. Que sempre estaria lá para protege-lo. Que eu não poderia ser a melhor mãe do mundo, mas o amava. Chegava do serviço e colocava o edredom na sala. Brincávamos muito”, disse mostrando as fotos antigas da família.
Foram três renovações da guarda provisória até que Rosana conseguisse a adotar Lucas definitivamente. Isso aconteceu quando ele já tinha três anos de idade. O irmão gêmeo do menino foi adotado pela tia de Rosana que, na época, tinha 66 anos. Atualmente eles moram em Cuiabá. “Passei os três anos indo todos os domingos na casa da mãe para que ela o visse. A situação da família nunca mudou, só piorou. Nunca escondi dele que era adotado. Quando completou dois anos passei a contar todos os dias a historinha do menino Lucas, que na verdade era a história dele. Um dia ele perguntou se aquela história era a história dele e eu disse que sim”, contou. A situação clínica do garoto melhorou aos oito anos de idade.
Rosana contou que Lucas sempre foi uma criança amorosa e amável e nunca deu trabalho. “Ele é meu filho. Não importa de onde saiu e que não tenha o meu sangue: é meu filho. Quando tem que brigar eu brigo, não passo a mão na cabeça não. Ele veio para preencher um espaço no meu coração. Tive momentos ruins na vida e pelo Lucas lutei. Um abraço, um sorriso dele, acaba com toda tristeza. Filho é uma benção. Tive algo a mais na minha vida. O Lucas precisava, era o que toda criança precisa, amor, saúde, alimentação e educação, isso ele tem muito”. O menino nunca mais teve contato com a mãe biológica.
Lucas hoje tem 13 anos. Durante toda a entrevista ficou ao lado da mãe, a qual fez questão de declarar todo o seu amor: “Ela uma inspiração para mim. É a minha mãe que sempre teve amor por mim. Uma batalhadora, uma guerreira. Chega do trabalho e sempre me deu carinho. Vou levar tudo o que fez por mim para o resto da minha vida”.
Rosana encoraja outras pessoas a adotarem também. “Não importa se está sozinha, se tem apoio eu aconselho a adotar. Se cada um que tiver condições de ter um filho a mais ou de adotar uma criança olha como teríamos um mundo melhor. Não é porque não é seu filho de sangue que não é seu filho. É sim. É muito bom ser mãe. Não me vejo sem o Lucas hoje. Não sei como seria a minha vida sem ele”, disse emocionada ao abraçar o filho.
Adoção deve seguir regras
A adoção está disciplinada no Código Civil brasileiro e deve seguir algumas regras. A advogada Luciana Martins, atuante em Direito da Família, elenca os critérios. Entre eles, ser maior de 18 anos, homem ou mulher, qualquer que seja o estado civil e que seja 16 anos mais velho do que o adotando. Família estrangeira residente ou domiciliada fora do Brasil também pode adotar.
“Para adotar o interessado deve procurar a Vara da Infância e Juventude de sua cidade para dar inicio ao processo de adoção. Neste procedimento deverão ser apresentados documentos como RG/CPF, certidão de antecedentes criminais, atestado de sanidade mental, entre outros, que serão analisados minuciosamente”, disse Luciana. “Os interessados serão entrevistados para expor os motivos e o que esperam com adoção”, explicou.
Segundo a advogada, a duração do processo de adoção não tem tempo determinado. “Vai depender do perfil do adotante e do adotando. Essa análise é feita caso a caso de acordo com as expectativas e com o encontro das crianças. Essas pessoas integram um cadastro de adotantes”, destacou Luciana.
No caso de a adoção não ter início por meio de abrigos ou casas de acolhimento, há algumas diferenças. “Se for diretamento com os pais, o adotante deverá ajuizar ação de adoção que, neste caso, deverá haver consentimento dos pais biológicos e do adotado se este for maior de 12 anos”, afirmou a advogada.
Luciana também explicou a diferença entre guarda e adoção. “Guarda provisória é a responsabilidade legal temporária, ou seja, transfere-se o exercício do poder familiar ao guardião por prazo determinado. A guarda permanente é a transferência do exercício do poder familiar para outra pessoa (que pode ser da própria família ou não) definitivamente. A adoação é a mais do que exercício do poder famíliar, é a alteração na filiação vez que atribui a situação de filho ao adotado, desligando-se de qualquer vínculo como os pais e parentes consaguíneos”, destacou.