Cotidiano

Com segundo pior solo do mundo, 319 prédios já entortaram no litoral de SP

Só a Cidade do México tem um solo mais inseguro para a construção civil que a 'capital' da Baixada Santista

Nilson Regalado

Publicado em 18/08/2024 às 07:00

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Para engenheiros, passou da hora de resolver o problema estrutural que atinge 319 edifícios / Nair Bueno/DL

Para os turistas, os prédios tortos de Santos são uma atração a mais na Cidade que concentra belezas naturais, qualidade de vida e história riquíssima. Para parte dos moradores, não é bem assim. Para engenheiros, passou da hora de resolver o problema estrutural que atinge 319 edifícios. Destes, 65 já atingiram inclinação "acentuada", conforme parâmetros estabelecidos pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Para se ter uma ideia da extensão do problema, Santos é a cidade com a maior quantidade de prédios inclinados no mundo. Só a Cidade do México tem um solo mais inseguro para a construção civil que a 'capital' do Litoral Paulista. E até torres 'modernas' estão entortando, conforme documento obtido com exclusividade pela reportagem.

Essa "excentricidade", como define o engenheiro José Carlos Garcia, no entanto, começa a preocupar moradores e especialistas em cálculos estruturais. Prova disso é que síndicos decidiram formar uma inédita associação para buscar linhas de crédito de longo prazo e com juros subsidiados. A ideia é pedir ajuda ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para estabilizar essas 319 edificações.

O primeiro encontro do grupo aconteceu no último dia 6, e os síndicos devem voltar a se reunir no próximo dia 27, já com a minuta de um estatuto e de uma figura jurídica capaz de viabilizar a negociação coletiva, em nome de todos os condomínios inclinados.

"Já se esperou demais para buscar uma solução", salienta Garcia, que há mais de 40 anos acompanha o mercado da construção civil na Cidade.

O engenheiro calculista evita o tom alarmista, mas explica que tradicionalmente os ventos em Santos ficavam na casa dos 45 quilômetros por hora. Porém, com as mudanças climáticas, a Cidade já registrou picos com ventanias de até 100 km/h. E a velocidade dos ventos é um dos fatores mais importantes nos cálculos estruturais de uma edificação.

Labirintite

O problema estrutural nos prédios de Santos começou a ficar evidente há 45 anos, quando uma torre localizada no Canal 4 com a praia precisou ser interditado. Naqueles dias, o Edifício Excelsior atingiu um desaprumo de 1,20 metro. Hoje, engenheiros ouvidos sob a condição do anonimato afirmam que há edifícios com 1,80 metro de desalinhamento.

E 65 torres já atingiram inclinação "acentuada", requerendo maior atenção do poder público. Essa condição de declividade "acentuada" está prevista na norma NBR: 6118-2003, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). E se dá quando a inclinação da estrutura é igual ou superior a 0,5% da altura total da construção.

Ou seja, para a ABNT o desaprumo "acentuado" começa a partir de meros 15 centímetros no caso de edifícios com dez andares. E essa declividade é medida comparando o desalinhamento entre as paredes do térreo e da última laje, no topo da edificação.

Parece pouco, mas nesse nível os encanamentos já podem apresentar problemas. Trincas podem surgir nas paredes. E pessoas com labirintite já sentem algum desconforto. "Dá muita dor de cabeça aos síndicos", resume Garcia.

Porta abre sozinha

Portas abrem 'sozinhas', janelas e o horizonte visto a partir desses prédios são completamente assimétricos, desafiando as linhas paralelas das construções convencionais. A água não necessariamente corre em direção ao ralo, espelhos e quadros ficam inclinados. E bolas ganham vida própria, rolando aleatoriamente para um dos cantos do imóvel.

Apesar da "excentricidade" descrita pelo engenheiro, a Prefeitura afirma que as inclinações não representem risco de colapso estrutural imediato. Porém, o assunto é um tabu na Administração Municipal, que não disponibiliza qualquer técnico para entrevistas.

Subsolo da Cidade é uma 'maria-mole'

Imagine um solo que é como uma massa de modelar infantil. Assim é o terreno em Santos, formado por areia na superfície e por argila flexível embaixo. Foi nesse ambiente que grandes construtoras ergueram torres com até 17 andares a partir da década de 1940. E o motivo para tanto desaprumo é o subsolo santista, formado por areia e argila marinha. Na definição do engenheiro e professor universitário Juarez Ramos da Silva, esse terreno é uma "maria-mole". Para o engenheiro José Carlos Garcia, o subsolo de Santos é uma "esponja". Na visão de outros engenheiros experientes, o chão onde hoje são erguidas torres com mais de 20 andares é como a massa de modelar das crianças.

E foi nesse solo que construtoras de São Paulo começaram a erguer torres com mais de dez andares logo após a II Guerra Mundial. Naqueles dias, levas de turistas "descobriram" Santos, levados à praia pela então recém-inaugurada Via Anchieta. E os balneários e hotéis já não supriam a demanda.

A primeira torre surgiu na esquina da Rua Ricardo Pinto, na Praia da Aparecida. Depois, veio o Edifício Santo Antônio, construído logo após a inauguração da Igreja de Santo Antônio do Embaré.

Sem conhecimento adequado sobre a geologia do subsolo santista, as fundações eram rasas. As sapatas ultrapassavam a primeira camada de areia, que chega a ter apenas quatro metros de profundidade em alguns pontos, e terminavam já no recorte seguinte, formado por argila marinha.

Mas, as "sapatas rasas" jamais atingiam a camada de rocha, que, no caso de Santos, só 'aparece' a cerca de 50 metros de profundidade. Essa técnica foi adotada pelas construtoras até o final da década de 1970 para atender o crescente fluxo de veranistas.

Pior solo do mundo

E só a Cidade do México tem um subsolo pior que o de Santos. Mas, nem na maior cidade da América Central há tantos edifícios inclinados como no Litoral Paulista.

Segundo engenheiros consultados pelo Diário, a capital mexicana foi erguida sobre um antigo lago. O reservatório foi drenado pelos espanhóis ainda no tempo da colonização para que suas águas servissem à produção agrícola. Com o uso intensivo, o lago secou. E, sobre ele, a cidade acabou se desenvolvendo.

Resultado: a umidade e a quantidade de matéria orgânica tornam o terreno instável na Cidade do México. E esse risco às construções mais altas é incrementado pelo risco frequente de terremotos na capital dos mexicanos. Cientes dos riscos, os engenheiros locais adotam técnicas cautelosas.

Torre de Pisa caiçara

O exemplo mais famoso de prédio torto em todo o mundo é a Torre di Pisa. A construção virou atração turística na Itália e atingiu 8% de desaprumo. Em Santos, o único prédio realinhado até hoje, o Núncio Malzoni, chegou a 4% de inclinação.

O edifício de 17 andares ao lado de uma das principais atrações da Cidade, a Pinacoteca Benedito Calixto, foi realinhado na virada do século, na Praia do Boqueirão. Caro, o trabalho foi conduzido pelos professores Carlos Eduardo Maffei, Heloísa Helena Gonçalves e Paulo Pimenta, do Departamento de Engenharia de Estruturas e Fundações da USP.

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