Cotidiano
Foram descobertas duas dragas para aprofundar a área de manobra para atracação de lanchas e iates em frente aos imóveis
A equipe ainda registrou imagens de outras motos aquáticas, lanchas e iates acima do limite de velocidade / Carlos Ratton/Diário do Litoral
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Sem regras e fiscalização, a maioria das nove marinas (duas condomínio) existentes no Canal de Bertioga praticamente lotearam o viário aquático de navegação - área de jurisprudência federal, considerada, de acordo com o Código Florestal, como de Preservação Permanente (APP), em toda sua extensão, por causa do mangue e a biodiversidade nele inserida.
A situação é crítica. Após denúncias, a Reportagem percorreu de barco o canal no último domingo (1) e registrou imagens constrangedoras de um ambiente visivelmente tomado pelo poder político-econômico, com indícios de burla da legislação brasileira, suposta quebra da isonomia e, principalmente, exemplos claros de falta de consciência ecológica.
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Vale lembrar que manguezais – que ocupam toda a extensão do canal - são considerados berçários do mar, pois são locais de reprodução de diversos peixes, crustáceos e moluscos, além de outras espécies marinhas que procuram as águas calmas e ricas em matéria orgânica para desovar. Tamanha biodiversidade aquática também atrai aves e mamíferos. No caso em questão, há anos que se registra queda dessas espécies no canal.
Para se ter uma ideia, informações dão conta que enquanto alguns pescadores são impedidos e multados por reparar seus poucos casebres e atracadouros rudimentares, os proprietários de marinas, sem serem incomodados, constroem residências luxuosas, atracadouros de alvenaria, delimitam com boias e cordas o espaço aquático e mantém guaritas de segurança particular, que se atreve a expulsar pescadores que se aproximam.
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Foram descobertas duas dragas para aprofundar a área de manobra para atracação de lanchas e iates em frente aos imóveis, construídos em área de mangue, visivelmente aterrada. A Reportagem chegou a flagrar dois postos de combustível para abastecer embarcações também sobre o mangue.
A construção ou qualquer intervenção humana em APP apenas será permitida se enquadrada dentro do que o Código Florestal (Lei 12.651/12). Ele estipula a forma sustentável e ecologicamente correta de se fazer ou se estabelecer. Caso contrário, a ação poderá ser enquadrada como infração administrativa e crime ambiental.
Além de mansões e outras construções, a área ainda abriga uma ‘balada’ abandonada, que chegou a funcionar meses com som alto madrugadas afora, sob ‘as barbas’ das autoridades ambientais. Atualmente, o equipamento está desativado por conta de uma ação movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), mas continua de pé, como outros que destoam do ambiente de Mata Atlântica.
Durante todo o percurso, não se viu fiscalização, nem para socorrer um homem e seu filho, rebocados pela embarcação da Reportagem, após os jet-ski pararem de funcionar no meio do canal.
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A equipe ainda registrou imagens de outras motos aquáticas, lanchas e iates acima do limite de velocidade, proporcionando marolas que causam perigo aos poucos pescadores que se arriscam na busca de sobrevivência. Vale ressaltar que a velocidade máxima no Canal de Bertioga e nos rios é de oito nós – 15 quilômetros por hora. A maioria estava em velocidade bem superior.
As marolas, além de causar risco de capotamento de embarcações menores, destroem a vegetação ciliar dos mangues, causando grande impacto ecológico. Algumas árvores nativas, por exemplo, estão com as raízes expostas e pendendo para os lados.
A Reportagem constatou que a destruição causada pela movimentação da água, que está ‘comendo’ a terra próxima da Rodovia Ariovaldo de Almeida Viana (SP-61) – a Guarujá-Bertioga, comprometendo, inclusive, a segurança dos veículos que a utilizam, inclusive os dos órgãos de fiscalização, encarregados de registrar, pressionar e até multar os poucos caiçaras resistentes que tentam construir um cômodo a mais em suas pequenas residências.
A legislação
O novo Código Florestal (Lei 12.651/12) estabelece como regra a proibição de construções em APP. Alerta em seus artigos ser uma área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.
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A legislação também alerta que manguezal é um ecossistema litorâneo que ocorre em terrenos baixos, sujeitos à ação das marés, formado por vasas lodosas recentes ou arenosas, às quais se associa, predominantemente, a vegetação natural conhecida como mangue, com influência fluviomarinha, típica de solos limosos de regiões estuarinas e com dispersão descontínua ao longo da costa brasileira.
Em seu 8º artigo estabelece que, excepcionalmente, é possível construir ou fazer outro tipo de intervenção somente em quatro casos: utilidade pública, interesse social, atividades eventuais ou de baixo impacto, em casos de pequena propriedade ou posse rural familiar ou atividades de aquicultura.
Somente pode-se em APP obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços públicos de transporte, sistema viário, inclusive aquele necessário aos parcelamentos de solo urbano aprovados pelos municípios, saneamento, energia, telecomunicações, radiodifusão, bem como mineração, exceto, neste último caso, a extração de areia, argila, saibro e cascalho;
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Também atividades que comprovadamente proporcionem melhorias na proteção e preservação dos recursos hídricos, da paisagem, da estabilidade geológica e da biodiversidade, da facilitação do fluxo gênico de fauna e flora, da proteção do solo e do bem-estar das populações humanas.
A lei prevê que o infrator pode ser enquadrado em infração administrativa e crime ambiental, além da possibilidade responsabilização civil. Vale lembrar que as supostas atividades de utilidade pública relacionadas a gestão de resíduos sólidos, instalações para competições esportivas estaduais, nacionais ou internacionais foram consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Diante do cenário do domingo, o Diário do Litoral buscou informações de autoridades e entidades, via assessoria de Imprensa, que deveriam garantir a preservação de APP e fiscalizar os supostos abusos cometidos.
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A Reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Guarujá (as marinas tem acesso também por terra - Rodovia Ariovaldo de Almeida Viana (SP-61) – a Guarujá-Bertioga; a Capitania dos Portos; a Polícia Florestal/Ambiental; o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) e o Serviço de Patrimônio da União (SPU).
A Polícia Florestal/Ambiental possui embarcações e equipes, mas para a Reportagem informou apenas que a “solicitação requer uma pesquisa mais detalhada e, por essa razão, pode ser formalizada pelo Serviço de Informação ao Cidadão – SIC através do link: https://fala.sp.gov.br.
O IBAMA respondeu que interessado em apresentar denúncia deve ser orientado sobre a necessidade dela ser encaminhada por meio da Plataforma Fala.BR (link: https://falabr.cgu.gov.br/), conforme determina o § 4º do art. 4º do Decreto nº10.153, de 3 de dezembro de 2019. “Diante destas, lhe solicitamos que registre vossa demanda através do canal indicado o qual buscam dar agilidade e transparência, bem como garantir a segurança da identidade dos denunciantes”.
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A Prefeitura de Guarujá reitera que a região citada é de jurisprudência federal, considerada de acordo com o Código Florestal. A Administração Municipal ressalta que a fiscalização das embarcações é de competência da Capitania dos Portos, da Marinha do Brasil, e o licenciamento de marinas é de atribuição da Cetesb.
“Todas as questões relacionadas às marinas situadas no Município têm sido acompanhadas pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MP/SP). Já as residências existentes em loteamentos e marinas seguiram os trâmites legais e foram aprovadas na oportunidade de suas implantações”.
Segundo a Cetesb, as garagens náuticas (marinas) existentes na margem direita do Canal de Bertioga, no município de Guarujá, encontram-se devidamente licenciadas e em situação regular. A mesma condição sobre dois postos de abastecimento de embarcações, instalados no interior das garagens Marina Porto do Sol Guarujá e Marinas Nacionais, também com licenças para operação válidas.
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“Com relação ao abuso de embarcações velozes, como jet skis, o controle da atividade compete à Polícia Naval, subordinada à Capitania do Portos do Estado de São Paulo”.
A Marinha do Brasil, responsável pela fiscalização nas vias navegáveis e águas interiores garante que, nos últimos cinco anos, expediu quase três mil multas. No mesmo período, foram em torno de 200 foram por excesso de velocidade, sendo 10 decorrentes de poluição hídrica proveniente de embarcações.
A Secretaria de Patrimônio da União (SPU) foi consultada para explicar se as construções estariam legais mas, até o fechamento da reportagem, não se manifestou.