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Quatro dias depois do casamento dos sírios Raushan Khalil e Barzan Iso, a milícia terrorista Estado Islâmico invadiu Kobani. O plano não era passar a lua de mel na guerra, mas foi adaptado.
Era 13 de setembro de 2014. A "lua de mel" avançou por mais de quatro meses, tempo em que militantes do EI mantiveram Kobani cercada. Quase 3.000 pessoas morreram.
Para fugir dos atiradores de elite do EI e dos bombardeios americanos, a advogada Raushan, 30, e o jornalista Barzan, 31, passaram meses se mudando de uma casa abandonada para outra, acampados com soldados da YPG, a milícia curda que tentava defender a cidade.
Enquanto conta a história, Raushan, uma síria de mãe russa, mostra fotos no computador: "Isso aqui são pedaços de corpos de combatentes do Daesh (sigla árabe do EI); este soldado era nosso amigo, morreu. Ela também."
O cerco a Kobani foi a Batalha de Stalingrado dos sírios. A libertação da cidade, em 26 de janeiro deste ano, é lembrada com orgulho.
Mas o inimigo continua próximo. O Estado Islâmico ainda está em Sarin, a 40 km de Kobani, em vários vilarejos próximos e controla Jarabulus, na fronteira turca.
O último grande ataque a Kobani foi em 25 de junho, quando militantes do EI se infiltraram na cidade, usando uniformes de YPG foram batendo de porta em porta e executando civis. Mataram 225 pessoas.
Hoje, a vida de Raushan e Barzan e de milhares de outros sírios é "quase" normal.
Raushan não pode visitar os pais em Afrin, outro cantão curdo no noroeste sírio. O EI explodiu a ponte que atravessa o rio Eufrates e controla todo o território. Para chegar, só dando a volta pela Turquia. Mas o governo turco raramente autoriza que se cruze a fronteira sem haver emergência médica ou convite.
Sem salário
O pai de Raushan não consegue receber o salário. Engenheiro funcionário do governo sírio, ele seria obrigado a ir até Aleppo buscar o contracheque, para "provar que está vivo". Mas Aleppo é disputada entre rebeldes sírios, a YPG curda e as forças do ditador Bashar al-Assad. Ou seja, ele prefere ficar vivo e não receber seu salário.
Raushan tampouco consegue falar por celular com os pais. Em Afrin, só pega a operadora síria. Onde o casal vive, só a turca Turkcell. É raro a ligação completar.
Locomover-se no norte da Síria é outro pesadelo. A reportagem da Folha de S.Paulo teve ajuda do consulado honorário do Brasil em Irbil para obter a papelada para a viagem.
Da fronteira entre Síria e Iraque, em Faysh Khabour, até Kobani são 500 km, quase a distância de São Paulo ao Rio. A viagem, porém, leva mais de dez horas.
Ao longo de todo trajeto, é preciso parar em inúmeros postos de controle (onde frequentemente explodem homens-bomba). É necessário obter a documentação com autorização da Asayesh (polícia curda) e da YPG (milícia curda) para se movimentar. E não se viaja à noite, por causa do perigo de ataques.
Ninguém reclama, afinal, só assim os curdos estão conseguindo manter o EI mais ou menos sob controle.
Os carros são todos velhos. "Aqui na Síria só funciona carro velho com motor Mazda, Honda ou Toyota", diz Barzan, que turbinou seu Hyundai caindo aos pedaços, mas cujo motor não falha.
Os soldados das YPG são os únicos que têm carros melhores -inevitavelmente camionetes Toyota Hilux branca (como as usadas pelo EI).
Barzan anda com uma AK-47 no carro. "Pior que ele nem sabe atirar, só eu é que sei", brinca Raushan.
Treinamento aos 15
Até a década de 2000, os sírios tinham três horas por semana de treinamento militar obrigatório na escola. Aos 12 anos, começa o teórico. A partir dos 15, há aulas práticas para usar as metralhadoras AK47 e a DShK (Dushka).
Hoje, muitos passam por três meses de treinamento militar por ano enquanto estão na universidade.
Em 2012, um ano após o início da guerra civil na Síria, as tropas de Assad recuaram da área curda no norte do país. A Revolução de Rojava foi realizada pacificamente.
Com o vácuo deixado pelo Estado na Síria, os curdos começaram a montar seu governo. Rojava -área no norte da Síria que abrange três cantões curdas, Jazira, Kobani e Afrin -tornou-se autônoma. Mas a alegria durou pouco, pois em 2013 os curdos passaram a ser atacados pelo EI.
A guerra é sentida no zumbido constante dos caças americanos, nos carros-bomba e as casas destruídas.
E também no cotidiano difícil. Kobani está sem eletricidade há quatro anos. Os moradores dependem de geradores, que funcionam oito horas por dia. A circulação de mercadorias da Turquia e Iraque para a Síria é restrita, então falta muita coisa.
Para Raushan e Barzan, está difícil fazer planos. A casa onde iam morar, em Kobani, foi totalmente destruída por um bombardeio aéreo.
Raushan quer engravidar, pois, aos 30 anos, já é "velha para ter filhos, segundo os padrões do Oriente Médio", como diz. "Mas como eu vou fazer com um bebê quando o Estado Islâmico voltar? Vou levar o bebê para o front?"
Eles não têm planos de deixar a Síria. Mas estão sem coragem de criar um filho no meio da guerra.
Por enquanto, adotaram uma gatinha, Liza.
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