Cotidiano

“A reforma política não pode ser feita pelos políticos que aí estão”

Mestre em Direito Político e Econômico defende que seja eleito um grupo de pessoas para cuidar do tema

Publicado em 03/05/2015 às 11:15

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O contexto da política no País é analisado, neste Papo de Domingo, pelo Direito Político e Econômico e professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Flávio De Leão Bastos Pereira, pesquisador do grupo sobre guerras, massacres e genocídios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ele acredita que a atitude de alguns grupos que insistem em pedir intervenção militar no País é resultado, entre outras coisas, da falta de formação, informação e um pensamento equivocado sobre o que provocaria uma real mudança no País.

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O docente – que foi colaborador na Comissão da Verdade Municipal de Osasco - revela que o Brasil não pode esquecer sua história recente e jamais permitir um novo período de chumbo, como foram os 21 anos da Ditadura Militar Brasileira, responsável, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), por 434 mortes e um número desconhecido de sobreviventes que, até hoje, guardam no corpo e na mente as marcas adquiridas nos porões de tortura clandestinos mantidos na Nação. “As pessoas pedem o retorno da Ditadura porque existe um baixo nível educacional e porque não conhecem a história. Quem não conhece sua história está condenado a repeti-la”, diz De Leão.

Diário do Litoral - Tem muita gente que acredita que os militares podem acabar com a insegurança, a corrupção e outros problemas brasileiros. Dizem que podem voltar. Podem? 

Flávio De Leão – Infelizmente, uma minoria extremista insiste em pregar a intervenção militar sem qualquer constrangimento. É importante ressaltar que as Forças Armadas hoje estão comprometidas com a ordem institucional, com a Constituição Brasileira e com os Direitos Humanos. Então, essa possibilidade é remota.

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DL – Os militares pensam diferente?

De Leão – O Brasil chefia a missão de paz das Nações Unidas para o Haiti. O general Carlos Alberto dos Santos Cruz liderou a maior e mais cara força de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) da história no Congo, numa guerra que já matou mais de seis milhões de pessoas. Ele também dirigiu as operações de manutenção da paz no Haiti. Pode haver exceções, mas as Forças Armadas hoje estão comprometidas com a democracia.

DL – Não tem como repetir o erro?

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De Leão – A maioria dos oficiais e praças que está hoje na ativa não participou da Ditadura. A classe profissional mais perseguida pela Ditadura foi a dos militares que se negaram a participar do Golpe de 64. Teve herói da FAB (Força Aérea Brasileira) que foi cassado. Isso tudo está registrado no vídeo intitulado Militares da Democracia.

DL – Os militares golpistas chamam o que ocorreu em 64 como Revolução Democrática de 31 de Março. Como o senhor vê isso?

De Leão – O movimento foi antidemocrático. Na época, o vice-presidente também era eleito. João Goulart (Jango) teve 500 mil votos a mais do que o próprio presidente Jânio Quadros, que acabou renunciando. Os militares nunca aceitaram o Jango, e o Golpe contou com apoio de civis também. Para alguns estudiosos, foi um Golpe Civil-Militar. Havia um sentimento um pouco paranoico. Do ponto de vista do ocidente capitalista, o comunista era o maior inimigo. O regime foi duro contra socialistas, intelectuais, esquerdistas, estudantes e políticos progressistas.

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DL – Jango era comunista?

De Leão – O Governo Jango não estava se aproximando do Regime Comunista. Ele (Jango) passa a ser contestado e temido porque iniciou as reformas sociais de base, como a agrária. Jango era um latifundiário, que estava mais para o modelo caudilho (ligado a setores tradicionais da sociedade e que baseiam o poder no seu carisma) do estilo Getúlio Vargas, do que o Fidel Castro, que junto com Che Guevara liderou a Revolução Cubana. 

O que aconteceu no meio das selvas ninguém sabe (Foto: Carlos Ratton/DL)

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DL – A elite brasileira temia Jango?

De Leão – Na década de 60, na maioria dos países das américas, havia uma distância muito grande entre as necessidades sociais e das elites. Isso perdura até hoje. O Brasil ainda é o campeão das desigualdades sociais.

DL – As torturas cresceram em 1968.

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De Leão – É o ano em que os militares assumem que estavam em guerra contra os revolucionários. Baseados, entre outras coisas, nas teorias francesas de combate à revolução argelina, que admitiam a tortura como forma de obtenção de informações com rapidez, o Brasil adota essa estratégia de combate ao comunismo que estaria se instalando no País.

DL – Cresceram as chamadas ‘casas de tortura’.

De Leão – Sim e eram mantidas de forma clandestina pelo Estado por intermédio de impostos pagos pelos brasileiros. A Casa da Morte de Petrópolis (RJ) era uma delas. Essas estruturas montadas pelo Estado bancadas pela população estão dentro de uma fase da Ditadura chamada de Terrorismo de Estado.

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DL – Tinham pessoas que nem passavam por elas.

De Leão – Sim. Essas tinham que ser mortas e eram geralmente os exilados que voltavam para o Brasil e entravam para a guerrilha. Os que os militares consideravam traidores, como Carlos Lamarca, e os que tivessem alvejado militares e agentes da repressão. Isso está no livro Casa da Vovó, do jornalista Marcelo Godoy. Lamarca e Carlos Mariguella eram pontos de honra dos militares. Várias pessoas se suicidaram em função das torturas sofridas e lesões psicológicas irreparáveis.

DL – Explique o que eram as chamadas escolas das américas.

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De Leão – Estruturas de combate conjuntas dirigidas e ministradas por militares norte-americanos, que ensinavam a torturar. A Operação Condor foi criada para prender, neutralizar e eliminar opositores aos regimes ditatoriais. Na Argentina, por exemplo, a Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), que se tornou o maior e mais ativo dos centros clandestinos de detenção e tortura utilizados pela repressão daquele país, por onde passaram mais de cinco mil presos, posteriormente, desaparecidos. Só 200 sobreviveram. Neste local, bebês eram levados das mães. Presos políticos eram dopados e atirados de helicóptero ao mar Direitos fundamentais eram literalmente esquecidos.

DL – Aqui no Brasil era a Operação Bandeirante (OBAN)?

De Leão – Sim. Ela coordenava e integrava as ações dos órgãos de combate às organizações armadas de esquerda. Reunia elementos das Forças Armadas, da Polícia Estadual - Civil e Militar - e da Polícia Federal.

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DL – Mas há quem diga que a Ditadura Brasileira foi menos traumática que as demais dos países sulamericanos?

De Leão – Tínhamos um bipartidarismo, um congresso funcionando, eleições e menos mortes, mas isso não quer dizer que a Ditadura Brasileira foi menos violenta que as demais. A Comissão Nacional da Verdade está apenas no início do trabalho. Para ter uma ideia, cerca de 8,5 mil índios foram mortos na Ditadura. Então, em tese, saltamos de 434 mortes para quase nove mil. O que aconteceu realmente no meio das selvas ninguém sabe.

DL – O Brasil precisa consolidar sua democracia?

De Leão – Sim mas, para isso, é preciso se estabelecer o que chamamos de Justiça de Transição, que nada mais é do que um processo lento e gradativo, em que quatro fases precisam ser superadas.

DL – Quais seriam essas fases?

De Leão – A primeira seria a apuração da verdade. Reconhecer tudo que foi feito, que é o papel da CNV. A segunda é estabelecer uma memória coletiva, que nada mais é do que lembrar sistematicamente a população e conscientizar as pessoas a não repetir experiências negativas do passado. Willian Faulkner (considerado o maior escritor da literatura norte-americana do século XX) escreveu: “O passado não existe. Ele sequer é passado. Continua batendo as nossas portas enquanto ele não é ouvido, conhecido”. O filósofo George Santayana também ensinou que quem não conhece sua história está condenado a repeti-la.

DL - Quais seriam as demais?

De Leão - A terceira é punir e responsabilizar os criminosos e reparar simbolicamente as vítimas. Na Argentina e no Chile isso já vem ocorrendo e nem se pensa em retorno de ditadura. No Brasil, as pessoas pedem o retorno da ditadura porque existe um baixo nível educacional e porque não conhecem a história. Pedem a intervenção militar constitucional que nada mais é do que uma interpretação absolutamente insustentável da Constituição Federal, visando tirar o poder mandatários eleitos pelo voto.

DL – Qual seria a quarta e última fase?

De Leão – A reformulação das instituições do Estado de forma a torná-las democráticas. Varias práticas hoje, ainda utilizadas pelo Estado, são herdadas de um período em que a população era vista com desconfiança pelas autoridades. Voltando ao livro do Marcelo Godoy, não se sabe, por exemplo, quantos membros do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna - órgão repressor criado pela Ditadura para prender e torturar aqueles que fossem contrários ao regime) assumiram funções na Polícia Militar. Acredito que parte dos problemas de violência que vivemos por parte do Estado decorre da não reformulação aprofundada das estruturas estatais, baseada nas experiências do Regime de Exceção.

DL – A Polícia Militar, por exemplo?

De Leão - A Polícia Militar é resultado de um Estado mal gerido e corrupto. Antes de desmilitarizar a polícia, é preciso oferecer Educação e Saúde de qualidade. Só em 2060 é que o Brasil terá completado sua rede de saneamento básico. No País, morrem 15 crianças por dia por falta de acesso à água segura. Se 77% dos jovens mortos neste País são negros é porque alguma coisa está errada. Nossa classe política é muito incompetente. A reforma política é imprescindível ao futuro do País. Mas ela não pode ser feita pelos políticos que aí estão. É preciso ser eleito um corpo de pessoas específico para cuidar disso.

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