Cotidiano

A lista ‘suja’ das seguradoras

Dezenas de caminhoneiros estão sendo impedidos de trabalhar porque estão devendo na praça. A situação contraria a Constituição

Publicado em 03/02/2014 às 10:28

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Não há um número exato, mas dezenas de caminhoneiros da Baixada Santista e região estão sendo impedidos de trabalhar, pelo simples fato de deixarem de pagar a prestação da geladeira, do fogão, uma conta de luz e até um cheque devolvido. É que as gerenciadoras de riscos e seguradoras criaram uma espécie de lista suja que impede as transportadoras de contratarem serviços de profissionais com nomes sujos.

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A informação é do casal de advogados Adriana Rodrigues e Fernando Vieira Silveira, que vêm tentando impedir que essa prática continue impedindo o ‘ganha pão’ dos trabalhadores, cujas vidas passam por uma verdadeira varredura. O banco de dados das seguradoras é velado e os caminhoneiros ficam sabendo somente na hora de carregar que estão impedidos de trabalhar. Muitos ficam desesperados por não conseguir sustentar a família e perdem, inclusive, o caminhão pago à prestação.

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Quando as seguradoras não conseguem obter as informações, exigem que as transportadoras consultem cadastros do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC) e na Serasa (empresa criada pelos bancos, com o objetivo de centralizar informações) para garantir a carga.

Segundo Adriana e Fernando, a Convenção das Leis Trabalhistas e a própria Constituição Brasileira dispõem que qualquer pessoa é livre para trabalhar se tiver a qualificação exigida por lei para a atividade proposta. Neste sentido, eles acreditam que o que as seguradoras estão fazendo é uma verdadeira discriminação.

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Seguradoras colocam caminhoneiros em lista ‘suja’ (Foto: Matheus Tagé/DL)

Isso porque os caminhoneiros estão sofrendo danos materiais, decorrentes das perdas sofridas por terem deixado de trabalhar, e morais, por força da humilhação sofrida. Muitos estão largando a profissão e outros ameaçando migrar para a contravenção por conta do desespero de ver a família passando fome.

“Isso não pode continuar ocorrendo. Se não existe problemas no trajeto, na carga ou no caminhão, por que privar o caminhoneiro de seu direito constitucional? Isso é discriminatório, um abuso de direito. O profissional não foi condenado criminalmente por roubo ou outro delito grave. O caminhoneiro não pode ser impedido de trabalhar por ter deixado de pagar a casa própria”, afirma Fernando.

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Adriana completa o raciocínio do colega. “As gerenciadoras de risco consultam até ações de revisão de dívida em função de juros considerados abusivos. Ou seja, o caminhoneiro está sendo duplamente penalizado. Tem profissional que está há mais de três meses sem trabalhar. Passou fome, vendeu o caminhão. A negativação no Serasa não impede que ele transporte a carga com seriedade e compromisso”, afirma.

A advogada revela que é obrigada a encaminhar para as seguradoras todo o processo de revisão de dívida. Caso contrário, o trabalhador não consegue carregar. “Para liberar o trabalhador, a seguradora pede cópia do processo inicial e todos os depósitos judiciais. Temos que ficar o dia inteiro cumprindo as exigências e, em muitos casos, o caminhoneiro, ainda sim, não consegue carregar”, explica Adriana. 

 “Minha mulher é que está segurando o rojão”, diz caminhoneiro (Foto: Luiz Torres/DL)

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Apólice

“Estamos entrando com ações no sentido de impedir que as seguradoras forneçam os dados negativos para as transportadoras, que assinam uma apólice que exige que o trabalhador não tenha restrições. Essa exigência é subjetiva”, afirma Fernando, que é incisivo: “ninguém é preso por dívida no Brasil”.

Adriana completa alertando que há casos de caminhoneiros que saem escoltados pela polícia da transportadora. “A carga é colocada sobre a carreta, tudo fica pronto para o transporte e, ao final, o caminhoneiro é avisado que não pode trabalhar. O constrangimento é real. Nossas ações contra as seguradoras visam até garantir os valores dos dias parados em função dessa situação”, finaliza.

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Já tem decisão em favor dos trabalhadores

A Terceira Turma do Tribunal Regional do Trabalho, do Distrito Federal, julgou a ação civil pública interposta pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e condenou uma empresa por danos morais coletivos no valor de R$ 100 mil pela participação em prática de ato discriminatório na contratação e manutenção dos trabalhadores de empresas de transportes de carga.

A ação interposta pelo MPT foi fruto do acolhimento da denúncia realizada pelo Sindicato dos Transportadores Rodoviários Autônomos de Bens do Estado de São Paulo (Sindicam-SP), em 2007, contra a prática de algumas gerenciadoras de risco, que estavam cerceando o acesso ao trabalho de muitos caminhoneiros autônomos. O Ministério Público acolheu a denúncia, apurou os fatos e chegou à empresa seguradora, como uma das responsáveis pela iniciativa.

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A empresa exigia, como condição para aprovar a cobertura do seguro de cargas, a realização de consultas cadastrais dos motoristas, a fim de verificar se existia alguma restrição ao crédito, pendência financeira, passagem pela polícia ou processo na Justiça, impedindo assim à inclusão de possíveis candidatos ao emprego. 

Segundo a Turma, a conduta gerou dano moral à coletividade de trabalhadores que prestam serviços às transportadoras de cargas. A decisão determina à empresa de seguros a abster-se da prática, sob a  pena de multa diária no valor de R$ 10 mil pelo descumprimento da obrigação. Os valores da condenação serão revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

Minas

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Em Minas Gerais, um acordo entre o Ministério Público do Trabalho (MPT-MG) e uma empresa de gerenciamento de riscos caminha para acabar com a ficha suja, abrindo um precedente importante para os caminhoneiros. Pelo acordo, a empresa se comprometeu a não investigar e divulgar dados da vida privada e íntima dos motoristas, impedindo-os de trabalhar.

Em 2007, o Sindicam-SP entrou com uma denúncia no Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP) contra empresas gerenciadoras de risco que bloqueiam o nome dos motoristas que apresentam alguma pendência com Serasa, SPC, Cartórios de Protestos, Fisco, Polícia e Poder Judiciário.

A Procuradoria do Trabalho garantiu que o que a empresa fazia era discriminação. Ela comprovou a ilegalidade porque a empresa reconhecia em seu próprio site que tinha (a lista suja) como um serviço para o público. A empresa tinha um cadastro com 30 mil motoristas e cerca de 30% deles estavam negativados por conta de débitos. O Sindicam tem um processo na Justiça contra 52 gerenciadoras de risco.

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Caminhoneiro conta seu drama

A Reportagem conseguiu o depoimento do caminhoneiro Cristiano Knabben, de 40 anos, pai de dois filhos, que está há três meses sem poder carregar. A família do trabalhador consegue sobreviver graças ao salário da esposa de Knabben. “Eu estou impedido de carregar porque estou com a prestação do caminhão atrasada. A seguradora consultou meus dados e proibiu o trabalho”, afirma.

O caminhoneiro revela que companheiros de profissão que estão com problemas de pensão alimentícia também não carregam. Há casos de prestação de lojas de departamentos atrasada que também impedem o carregamento. “Minha mulher é que está segurando o rojão”, afirma.

Knabben é autônomo e quando estava trabalhando conseguia ter um salário mensal de mais de R$ 6 mil. “Quem trabalha como empregado, que não é meu caso, é bem pior. A saída é tirar a carga em nome de outro companheiro para levar o pão para casa”, afirma consciente que a situação é irregular.

“Se ocorrer um acidente e a carga for danificada, a seguradora não paga porque o motorista era outro. Além disso, existe a questão policial. Podemos ser confundidos com um ladrão de carga”, completa.
 

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