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O dia amanheceu quente e úmido. O sol brilhava forte no céu azul, mas a brisa era morna e carregada de vapor. As plantas transpiravam, as folhas brilhavam e o ar parecia se mover em ondas.
De tudo, lembro como se fosse agora. Eu ali sentado num canto da cozinha, com uma xícara de café já frio, atrasado para o trabalho e observando a paisagem que brotava dos azulejos que desde sempre enfeiam minha cozinha. De repente, tive uma ideia estranha.
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"Será que um dia podemos virar água?", pensei.
A ideia me pareceu absurda, mas ao mesmo tempo fascinante. Afinal, a água é a substância mais abundante do planeta. Ela está em tudo, do ar que respiramos aos alimentos que comemos e no espanto do grego Tales de Mileto, tido como o primeiro filósofo do ocidente, que conclui: “Tudo é água”.
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Comecei a imaginar como seria ser água. Seria como flutuar livremente? Sem peso? Seria como ser parte de tudo, ao mesmo tempo sendo nada? Seria como experimentar a plenitude da vida (sabe-se lá o que ela de fato seja)?
Pensei em muitas possibilidades, algumas probabilidades e nenhuma certeza. Eu poderia ser uma gota de chuva, caindo do céu e fertilizando o solo. Eu poderia ser um rio, correndo em direção ao mar. Eu poderia ser um oceano, infinito e misterioso.
A ideia de virar água me deixou extasiado. Eu queria experimentar essa sensação fluida e mística de poder ser o tudo e o nada, o princípio, o fim e o meio, como cantava Raul Seixas acerca do divino, parafraseando o “Bhagavad-gita”.
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Mas como fazer isso? De fato, passei a buscar meios para tanto!
Fiquei pensando por um tempo, mas não consegui encontrar nada, uma sensação de lapso-temporal onde nada acontecia. A única coisa que sabia é que era algo que deveria tentar. Depois de um tempo, desisti de pensar no assunto. Terminei meu café e fui para o trabalho.
Mas durante todo aquele dia, essa ideia de virar água não me deixou. Pensei nela o tempo todo, enquanto trabalhava, enquanto conversava com as pessoas e enquanto dirigia no caminho de volta para casa.
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Cheguei com os pés moídos e a alma exausta. Fui direto para o quarto e me deitei. Suado, porco, sem banho, cansado.
De repente, senti um sono profundo tomar conta de mim. Fechei os olhos e só me deixei levar.
Sonhei (quanto, não sei) e no sonho eu estava em um lugar desconhecido. Era um lugar tranquilo e pacífico, cheio de luz e talvez até beleza.
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Estava solto, fluido, sem pesos ou as amarras do corpo. Sentia o ar fresco em meu rosto e o sol quente em minha pele. Era uma sensação incrivelmente estranha. Eu me sentia livre como talvez em tempos idos e imemoriais da humanidade enquanto ainda molécula ou bactéria.
Flutuei por horas, sem rumo. Apenas apreciava a sensação de estar vivo.
De repente, vi algo à minha frente… e às minhas costas. Uma grande massa azul e cristalina. Me juntei àquela água e, siameses, senti apenas os impulsos e empuxos de mergulho.
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Mergulhado. Água fria. E senti meu tronco se dissolver em todo seu interior.
Eu era a água. Eu-água. Fiquei assim por um tempo (quem sabe não tenha sido para sempre). Até que acordei. Abri os olhos e novamente estava em meu quarto. Só. Inundando-me. Suando. Urinando. Salivando. Cuspindo. Sangrando. Olhei para o teto e sorri. Água para quem tem sede. Bebi meu corpo por todo tempo que me resta.
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