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Todo dia é uma expressão hiperbólica. E como todas as expressões exageradas, é óbvia a sua generalização em tom assertivo de verdade. E de tudo que generalizamos sob a ótica da certeza, empobrece-se a novidade do instante, a construção do sentido, a busca da beleza. Todo dia é isso! Sem mistério, sem véu, às claras e na cara de pau da incredulidade rotineira de que tudo está posto, não vê quem não quer.
Exagerado por exagerado, assobio Cazuza e espero o tempo passar, pois sempre passa como nau que navega a ermo.
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E no mar conheci aquela, esse oxímoro que me acompanha.
Num canto da areia eu (e não ia à praia) contra o vento que soprava e atingia em cheio cara e ouvido da musa (que não estava). E citando um velho filósofo, uma conversa quase em verso se iniciava: “Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.”
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A voz me devolveu: É Hobbes, Thomas Hobbes, o filósofo inglês do XVII.
Em princípio ri, do XVII não é comum que alguém fale, e não corrigi a frase, pois todo dia espero um pouco do amanhã desavisado e quase oculto. Mas devolvi minha fala como resposta interrogante: Me parece que assim costuma ser, ainda que jamais afirme que de fato sempre será. Agora a musa ria, som ausente. Sabida dos mistérios que professava, me correspondia em tom de alerta: É um filósofo deveras exagerado. Não te martirizes pelo dito na hora do medo. Desconfia, declama poema, faz ciência e goza. A vida é um vaso, mas transborda.
A praia (que não via) estava um tanto cheia do deserto das areias e do vendaval de fazer voar lençol de minhas lembranças do varal de minha avó. Àquela que haveria de me acompanhar, relutei numa nota: Estranho o que dizes, não desgosto assim, meio escuro, meio claro. O inglês não invalida a alegria quando a nós recorre, pregressamente, ao medo desta angústia de existir enquanto gente. E ainda, eu continuava, sem contrapesos a mente para, sobra o corpo, o ataque, sobra o tempo de hoje, o céu de agora, mais nada.
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Silenciei, já não lembrava da sensação de sentir-se garra.
Calma, tal musa que eu descobrira e então acompanhava, não falou em seguida à minha fala. Aquietou-se.
Sem graça, sem jeito, deixei a descoberto tudo aquilo que visualizava e no instante senti que me via por dentro como quem procura e não acha nada. Gelei como quem gela em neve. Sol da Sibéria na invernada.
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E aquela que me fascinara, exagerou equilibrada: Todo dia uma nova alma. Não te recorde do medo como quem não enxerga a alvorada, todo dia o hábito é uma nova estrada. O inglês estava certo sobre a natureza exacerbada? Estava?
Todo dia é expressão hiperbólica, eu recordava, no que ela, de súbito, na voz de Drummond, me declamava “Consolo na Praia”: “Vamos, não chores…A infância está perdida./A mocidade está perdida./Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou./O segundo amor passou./O terceiro amor passou./Mas o coração continua.
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Perdeste o melhor amigo./Não tentaste qualquer viagem./Não possuis casa, navio, terra./Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,/em voz mansa, te golpearam./Nunca, nunca cicatrizam./Mas, e o humor?
A injustiça não se resolve./À sombra do mundo errado/murmuraste um protesto tímido./Mas virão outros.
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Tudo somado, devias/precipitar-se – de vez – nas águas./Estás nu na areia, no vento…/Dorme, meu filho.”
Todo dia, afinal, também é só de repente, para frente, paradoxo, para sempre!
Acalmou-se a maré na praia do desapego! Nem musa nem eu, tudo em aberto e ausente!
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