Olhar Filosófico
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Não me tocou ser filósofo. No máximo, tocado como médium das palavras mortas de pessoas idas e vindas sem escala. É um pouco isso. Pouco, veja bem. Na fila, veja bem. Previsível a senha que tinha nas mãos. 884.000.000. Não entendo de sonho à época, veja bem. Ouça bem também. Não esperavam para o café e isso até aqui era óbvio. Nunca esperariam, aliás. Ouça e veja bem. E sinta bem. Veja só. Na fila.
Ao meu lado um resmungo ordeiro, de fila. Parte do processo de permanecer andando naqueles espaços parados. Não observei se havia homens ou mulheres ou pedras e bichos. Também não vi painel eletrônico, daqueles imensos que só aparecem números e dão apitos de chamada em chamada. Experimente isso, atrás de mim entoavam um bolero, experimente isso, era um sussurro que ainda me persegue e sibila ao pé do ouvido. Bolero, ouça bem. E, infelizmente, só me veio Ravel para lembrar agora, unicamente ele e aquela melodia inconfundível, aquela, tan tan tan tan - tan tan, cantarolando fica melhor, mas não era o francês trivial. Era a palavra bolero com acompanhamento em música no ritmo melódico de dança, dois pra lá, dois pra cá.
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Senti como um freio de arrumação a entrada de um indivíduo meio tosco, meio doce, meio anjo, meio fogo. E todos (mas não sabia quem) olhando o horizonte sem a linha que divide céu e terra, Hamlet e seu pai, João Grilo e a Compadecida. Sem linha. E sem a linha não tem vida por um fio, não tem quem controle o desenrolar do tempo. Aflitivo, veja bem. E ouça bem.
Número oito gritaram de um lugar que não se enxergava ao certo. Número oito. Vem ou não? Uma salva de palmas foi lançada ao vento e a senha se consumiu como cometa em céu de brigadeiro com retoques gourmet de pudim de coco. Palmas, veja bem, palmas. Número oito, não é?! Oito. Se deitado, jamais chegaria. Tiveram bom senso, pensei, mas nenhum pensamento maior ganhava sobrevida. E tudo ao alcance das mãos, ouça bem. Nada fora daquilo que experimentamos entre imagem, ideia e matéria, ainda que não chegue a ser. E lembre-se, não entendo de sonho à época. Veja, veja bem.
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À minha frente, só pude perceber a careca e um restante de cabelo que outrora comprido fora, agora fora, nada, uma corcova de dromedário e resto de uma samambaia embranquecida. Tesc, tesc, fez com os dentes. Tic, tic fez com as mãos que em seguida passaram a figurar como asas para aqueles que iriam ouví-lo. Eu? Veja bem, nada escolhi, ouça bem. E, então, ele passou a iniciar um discurso, a esboçar uma repulsa, a reviver uma sanha durante a infindável fila das senhas: “O que vós, cidadãos atenienses, haveis sentido, com o manejo dos meus acusadores, não sei; certo é que eu, devido a eles, quase me esquecia de mim mesmo, tão persuasivamente falavam. Contudo, não disseram, eu o afirmo, nada de verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras que divulgaram, uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela qual disseram que deveis ter cuidado para não serdes enganados por mim, como homem hábil no falar.”
É isso, me questionei, estou em Atenas? Era Sócrates aquele senhor colérico e irônico? Um copista de corpo em texto talvez? De certo, de tudo que já dele havia lido, mais irônico me parecia, na presença, menos, mais raivoso e mais suspeito. Era a mosca na sopa grega de letrinhas? Era olímpico o drama?
Nuvem e neblina, cadê o grego, tchau espasmo e um novo grito. Número 100.000.000, por favor, com jeito e sem metáfora. Nome, nome, nome, berrou a criatura agora (se é que algo era ou coisa sendo antes) meio vento, meio tratado de ética deontológica. Eu nada vi, veja bem, fato, nada vi além de ouvir como em megafones de decibéis, sempre em tons mais do possível, potentes: “Mesmo que vivesses três mil anos, ou até trinta mil, lembra-te que a única vida que um homem pode perder é aquela que está a viver no momento; e mais, que ele não pode ter qualquer outra vida a não ser aquela que ele perde. Isto significa que uma vida mais longa ou mais curta vão dar ao mesmo. Porque o minuto que passa é o bem igual de todos os homens, mas o que já passou não é nosso. A nossa perda, portanto, limita-se àquele momento fugaz, uma vez que ninguém pode perder o que já passou, nem o que está ainda para vir — porque como é que ele pode ser despojado daquilo que não tem?” E entre vaias e confusões pude discernir um ar de Marco Aurélio, o imperador estóico, estético e trágico. Quase lamentoso, veja bem, do que li, nunca pensei tal coisa daquela voz quase sorumbática, ouça bem. Leia, leia.
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Senha na mão, fundo escuro anuviando meus sentidos, sem mais chamadas ou gritos, nem filósofos ou imperadores trastes e tristes. Eram meus pés que iam à frente. Vontade alheia, senha na mão, na mão, a ponto de se rasgar como asa de borboleta, que de tão suadas (minhas mãos) fez-se tatuagem de números: 884.000.000.
Antes que desintegrando me parecia, a canção envolta em furacão acalentava minha solidão do instante próximo que não chegava, não desenrolava, sem fio ou linha de horizonte, linha reta ou previsível, a canção aflita: “Arre, estou farto de semideuses!/ Onde é que há gente no mundo?/ Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?/ Poderão as mulheres não os terem amado,/ Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!/ E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,/ Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?/ Eu, que venho sido vil, literalmente vil,/ Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.”
E dormi, dormi, pois não era sonho então, veja bem, não era sonho, ouça também, ouça como quem lê invertido o código de Hamurabi, todo aquele código de um dia sem Sol. Rei morto, veja bem, reis mortos.
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