Olhar Filosófico

Sem sentido que alimenta

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Sempre admirei o jeito de cada ser se comunicar. Entre nós, os animais que violam a força instintiva do ato de crer em si enquanto máscara de alguma espécie, a comunicação me toma a vida. Contemplativo, fico a olhar as bocas pronunciando palavras que antes eram ideias e agora se dissipam como ar soprado de um sinal, agora, ultrapassado. 

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A coerência de um raciocínio é algo lindo. Se em pinceladas, teorias, poemas, gritos e palavrões devidamente colocados, pouco importa. É uma lindeza para se agradecer de ver o dito, ouvido, jogado à frente enquanto marca proferida. Ainda mais quando tudo quer apontar para uma análise ou sentido mais profundo de ser das coisas, quase oculto, das gentes, dos bichos, das plantas, dos sons e dos buracos da antimatéria. Ou a descrever a receita do bolo caseiro que comíamos na casa das avós, reais ou imaginárias, forjadas de carinho, suor, cansaço e certa melancolia. 

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As frases, espetáculos à parte de indivíduos em construção, ora sentença, ora dúvida, ora exortação, se largadas no vento com endereço certo, tocam aquilo que achamos alma e tremem aquilo que somatiza, corpo.

As palavras, como potencializava Cássia Eller, “Palavras, apenas/ Palavras, pequenas/ Palavras, momentos/ Palavras, palavras, palavras, palavras”, paixões, pulsões em frascos de adjetivos, substantivos, verbos e mais, são tudo que no fim temos, no início também e no meio, por que não? Pelos, poros, suamos palavras, pelos tais os irmãos animais suamcomunicações outras, e tudo, paradoxalmente, é tato. A palavra tateia o silêncio e o silêncio, palavra divina: “Pois a natureza é isso, sem medo nem dó nem drama”, versaram Renato Teixeira e Almir Sater.

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Particularmente, tenho adoração por premissas que não aconteceram ainda como fato, entre atos, nebulosas, aquelas em busca de alguma lógica no acaso de ouvidos errantes. Sem sentido que alimenta.

Premissas assim, do tipo “Não falo nem nada porque nunca acontece”, do tipo “Se fosse vegetal ainda assim era, já nem sei mais se no caso ainda é”.

Tenho ouvidos “parabolicalizados” para tais ais e uis da existência. Às vezes num sorriso, vejo a boca alheia pronunciando motes, “Deixa comigo, menina, se latisse juraria que era gato” ou “Se jabuti tontear juro que lebre inverte a fábula”. Tudo por aí, mercados (pois, onde não é mercado que nos encontramos?).

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Dia desses mais pérolas, “Carlos, ontem na novela assistiu o capítulo do sonso?”, e aquele Carlos que supus, “Só vi! Deu desgosto de pensar no troço lá”, quando, “Pois, então, não é?” A vontade que tive, no sorriso tímido que me guardei, era o de tocar aquele som e sentir dentro aquelas pessoas, ser uma inteligência artificial a acomodar dados incalculáveis para aqueles artifícios da linguagem nossa.

E não falo só de bocas que pronunciam, mas em libras também se reza, ri e chora. Mas como em libras ainda não me compreendo, admiro o gestual da dança como força da vontade. E, aliás, da fala universal, realmente o gesto é o sentido pleno, maleável por essência, à cultura que aprouver, mesmo no xingo ou resmungo desmedido. 

No posto, eis a pergunta que se substanciava seca, direta, “Patrão, álcool, gasolina?”, num gesto, apontei pronome ao substantivo de preferência, “Aquela”.

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Na padaria o sinal trocado em minha frente, “Pois não, senhora, pode pedir”, e a senhora de vinte e poucos, “Me vê duas bombas”. Pensei intranquilo, que maravilha o paradoxo. E, seguinte da fila, por via das dúvidas, desisti dos pães e solicitei, “Para mim, três sonhos”. Sensação ímpar de salvar o dia, degustar o tempo. 

Naquela noite mal dormi, antes tivesse apenas dormido mal. Indigestão e pesadelos. Antes a bomba que o sonho, talvez. Pá, Paz, Palavras coisificadas. Ainda assim, maravilhas.

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