Olhar Filosófico
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“Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Assim termina o sensacional “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Livro do genial Machado de Assis.
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Quando o li pela primeira vez, ainda adolescente, me veio à mente uma estranha impressão da vida que carrego ainda hoje. Não pessimista ou otimista. Diferente. Uma outra coisa além desses extremos. Como se viver fosse, a um só tempo, espera para não sei onde e resignação por não saber porquê. Uma ideia que surge, escapa e não se materializa. Sendo a vida porosa demais para dela se ter e tirar ideias.
E nesse viver sempre em suspenso, igual a dados e arquivos que colocamos na “nuvem” da virtualidade e salvamos num ato de fé cega na existência de servidores por nós desconhecidos, entendi que a vida é lembrança.
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A filosofia, a arte e a ciência, maravilhas humanas para humanos, existem e se desenvolvem no ar rarefeito das lembranças. Se concretizam pelo simples fato de ter de ocupar um espaço que é e será dominado pelo vazio. Como bolhas a ferver dentro de uma panela com água. Vemos o que ela é no momento em que surge para não ser mais. A chama de todos os fogaréus que queimam, iluminam, arrasam e ocupam um espaço que é do vazio. Bolhas, chamas, ventos, células, rios, tudo de passagem para a reconstrução só nas lembranças.
E se tudo for só lembrança de alguém para alguém e assim sucessivamente para o merecido descanso no esquecimento? E se o mundo for só isso? Vida, a construção da lembrança ainda não ausente, morte, a lembrança presente da ausência que sobrou.
Acontecemos como coisas, seres, pessoas, pelo emaranhado de lembranças. Afetivo, afetar, lembrar.
As religiões são ritos e coros às lembranças. Narradas como fatos, inventadas como sonhos. Suspiro dos oprimidos, como sustentara, com imenso respeito e carinho, o filósofo Karl Marx (1818-1883).
O segredo da vida, para que tudo valha a pena, se a alma não for pequena, como insinuou o poeta, talvez seja o de buscarmos uma razão para sermos lembrados. Mas queremos ser lembrados? Como fardo ou como nuvem? Como poema ou como guerra? Como amor ou como fera? Como dano ou como saudade?
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E a lembrança, no mais, é sempre condicionada. Varia de afeto em afeto, ou seja, segundo a forma que vivenciamos os fatos que se consolidam entre proximidades e distâncias, encontros e desencontros, fantasias e sangue nas veias.
Talvez não dissesse como Machado de Assis, “não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”, mas, “não transmiti a nenhuma criatura o legado das nossas lembranças, porque viver é contar.” Que cada um conte a partir do zero. Crie-se a partir do nada na misteriosa gratuidade da vida. Afinal, o mundo é o milimétrico espaço de narrativas entre estar e desaparecer, entre amar e deixar de querer, entrementes, entremuros, entre, a casa também é sua.
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