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Abre a cena. Uma mesa, uma cadeira, um espaço à meia luz. Duas lâmpadas seguem piscando. Silêncio de vozes e um pequeno tilintar ao fundo sugere um restaurante, um bar, umataberna. Hotel de refeições e algo para se beber e não morrer de tédio.
E estávamos lá, você bem sabe. Aliás, todos estávamos lá. Sempre estivemos lá.
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Pedimos, naquele dia, naquele tempo, um prato de sopa ou algum caldo típico de estação fria. Julgo que era sopa mesmo.
Durante toda a refeição, na situação de esfomeados e protetores da caça, que era tão somente sopa (julgo eu), um inseto pairava sobre nossas cabeças. Instintivamente protegíamos com os braços, abanos de mãos e cotovelos aquele prato que também nos consumia enquanto coisa por dentro da frieza de nossos peitos.
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Sobre nossas mentes atarefadas e cheias das regras do dia, aquele inseto asqueroso, rude, inconveniente e a nos lembrar de nossa mortalidade diária acelerada pelos minutos mal vividos.
Musca domestica ou talvez Musca autumnalis, aquela a perseguir cavalos e gados. Enquanto defendíamos nosso pedaço de cosmos e satisfação, refletido no prato quente, aquela mosca impertinente acertava o alvo da alma da nossa tranquilidade. Insetos dessa natureza não aparecem assim gratuitamente, sem propósito, nem mesmo escapam de nossa ira impunemente. Uma mosca sempre nos une com pedras nas mãos, aliás, todos sentimos isso ali, em silêncio, essa unidade, calados com nossos julgamentos e jeitos de ser. Ela, a senhora mosca, nos faz conservar aquilo que achamos que temos e está sob nosso controle.
Mosca na sopa, a mosca que picou a consciência de Atenas. Comparação singela atribuída a uma fala do filósofo Platão em referência ao ofício vital de Sócrates, seu grande professor e inspiração.
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Aquele inseto insolente que nos tirava a calma, agora era transformado em filósofo e senhor de si.
Mosca na sopa, Raul 1973, dizia o que tinha que ser dito à dita que nos castigava. E se incomodava aqueles que a sentiam perto, tirava da ordem o mundo pretensamente estabelecido. Nada haveria de se estabelecer. “Eu sou a mosca que pousou em sua sopa/ Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar/ Eu sou a mosca que perturba o seu sono/ Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar”.
Naquele restaurante éramos a nossa história entrelaçada de medo e fúria. Covardia de ideias e verdades ensopadas. E embotamento.
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Em verdade, em verdade vos digo, tínhamos certezas demais naquele nosso prato tomado quente, tomado o sonho, tomado a vida. A mosca lá, antes e depois, a novidade a nos tirar do sacrossanto cansaço do tempo, a atrair, a amedrontar. Era Sócrates, era Raul, era século V a.C, Grécia e cicuta, era século XX, Brasil de pólvora.
A mosca mostrava o que ninguém ousava dizer ou reparar, “Atenção, eu sou a mosca, a grande mosca/ A mosca que perturba o seu sono/ Eu sou a mosca no seu quarto a zum-zum-zumbizar/ Observando e abusando/ Olha do outro lado agora, eu tô sempre junto de você/ Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura/ Quem, quem é/ A mosca, meu irmão.”
Fecha a cortina. Som da plateia insatisfeita com o espetáculo. Espiadas no pano e os comensais ainda perdidos na cena anterior. Confusos. Afinal, havia realmente uma mosca no palco? Aquele zumbido? Aquela sensação de quase desespero? Tudo fora real? Pausas dramáticas, licenças poéticas? Ali estavam as personas em Pessoa? Afinal, o artista também é um fingidor, “Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.”
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Atenas nunca mais seria a mesma depois da grande mosca a zumbizar sua consciência. E permaneceria igual de alguma forma, cidade e deusa, matando a mosca, se livrando dessa descarada? A grande mosca?
Lembro-me da fala firme, socrática e direta, entregue por você num sussurro, “Então, pus-me a considerar, de mim para mim, que eu sou mais sábio do que esse homem, pois que, ao contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e bom, mas aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber. Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso - ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei. Depois desse, fui a outro daqueles que possuem ainda mais sabedoria que esse, e me pareceu que todos são a mesma coisa. Daí veio o ódio também deste e de muitos outros.”
Alguém grita das poltronas sobre a demora para o próximo ato. O som do teatro trágico começa como coro, como grito, como mágoa. O diretor parece cansado do desenlace estranho dos artistas, da própria arte. Cumpriu seu papel?
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Do fundo do palco, onde ainda havia luz, atrás das cortinas, o coreógrafo declamava com certa impaciência: "E não adianta vir me detetizar/ Pois nem o DDT pode assim me exterminar/ Porque você mata uma e vem outra em meu lugar.”
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