Olhar Filosófico

Quando os homens de fé desistem

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O artigo de hoje, para você que me acompanha, é a conclusão de uma ampla discussão que iniciei há duas semanas sobre o suicídio.

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Tudo começou a partir da provocação de um amigo padre. Estava ele (e ainda está, é claro) preocupado em entender e refletir mais profundamente sobre as razões do alarmante número de religiosos brasileiros que cometeram suicídio no último ano.

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De minha parte, uma vez instigado e compartilhando da mesma urgência, ampliei o tema, busquei referências e estatísticas e, no caso específico do fenômeno por entre o clero,  fiz um recorte para melhor compreender este fato. Estudei caso a caso e contra todas as respostas prontas e condenatórias, me perguntei: Por que os homens de fé desistem? Justo eles? Pessoas devotadas à esperança e à divulgação das ideias de vida numa sociedade também, majoritariamente, religiosa? Por isso, e junto à pergunta e seu contexto, acredito ser emblemático esse fenômeno para mais estudos e atitudes frente ao suicídio, de maneira geral, em nosso país.

Só para termos uma noção da gravidade do problema e reforçarmos essa discussão como caso urgente de saúde pública, de 2021 até a data de hoje, 10 casos (confirmados) de suicídio ocorreram dentro do clero católico nacional. Um fato significativo, todos eram homens (o que nos levaria a uma outra importante discussão social).

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Encontrei ao menos um, de três fatores recorrentes, em cada caso: desencontro (social), desespero (pessoal) e abandono (coletivo). E isso, é claro, desconsiderando uma pequena parcela dos sacerdotes que eram acusados de crimes horrendos, sobremaneira, a pedofilia, e buscaram, pondo fim à própria vida, fugir (ou prestar contas) da condenação pelas injustiças praticadas.

  1. Desencontro social: percebi que a maior parte daqueles que cometeram o ato extremo, não se sentiam capazes de fazer parte de uma vida social comum e rotineira. A paróquia era sua casa e seu refúgio, mas, também, sua prisão e seu mausoléu. Tinham um excesso de deveres e, ao mesmo tempo, uma expectativa social lhes imposta para que tomassem decisões para as quais não detinham o poder real que se imaginava. Frente a uma estrutura que, embora os definisse socialmente, sentiam-se anulados em boa parte de suas individualidades. Presos ao clericalismo (que mistura hierarquia, poder e patriarcalismo), inclusive, incentivado por grande parte dos leigos frequentadores das paróquias, viraram burocratas de uma ONG de muita liturgia e pouca ação, de muito pietismo e pouca compaixão, de muita repetição e pouco sentido criativo. Homens partidos e exaustos.
  2. Desespero pessoal: levados por um trabalho estafante e com índices alarmantes de depressão (entre as 3 maiores profissões mais estressantes do Brasil), vivem um dia a dia que pode se mostrar desesperador. Diferentemente do que muitos de nós pensamos, padres são trabalhadores de uma instituição que precisa de gestão, organização, escolhas e jogo de poder. Cansados, muitas vezes não percebem que necessitam de terapia e acolhimento, assim como não são incentivados em suas dioceses para vivenciarem constantemente situações terapêuticas individuais e de grupo. Há, sem dúvida, uma pressão cultural praticamente no desenvolvimento de toda história da religiosidade cristã que lhes grita: angústia, melancolia, tristeza e depressão são expressões da falta de esperança. Assim, uma pessoa religiosa depressiva ou psicologicamente vulnerável é como que a prova objetiva da falta de fé e despreparo para a vocação ou função escolhida.
  3. Abandono coletivo: envolvidos em tantas situações que pedem bom senso, responsabilidade e maturidade, esses homens do clero tendem a sentir na pele o abandono dos pares. Formados em seminários inadequados do ponto de vista psicológico, intelectual e social, perdidos no tempo e segregados da sociedade que  voltarão com novos papéis sociais, se veem lançados num mundo para o qual não foram “prontos”. Imaturos e, muitas vezes, até infantilizados, se refugiam para dentro de si mesmos e na confiança cega nos superiores, representantes dos cargos milenares de poder, como defesa às mais diversas inseguranças humanas. E, como num círculo vicioso, gerações mais novas de sacerdotes, tomadas pelo fascínio de vivenciar o gozo inicial de um poder social, tendem a desconsiderar e não reconhecer o exercício e a sabedoria dos pares mais velhos, fortalecendo os traços do abandono.

Acondicionados numa sociedade desigual e em mutação, numa instituição milenar repleta, também, dos seus próprios pecados, não fogem às influências do meio no qual nos encontramos. Uma sociedade do consumo, da competição e do descarte, da felicidade a qualquer custo, do acúmulo material e da miséria humana.

Por isso, considero significativo para ilustrar o debate sobre o suicídio, ainda que tendo chamado a atenção só para os fatores mais latentes, levarmos em conta a desistência de viver das “pessoas de fé”. Assim, quem sabe, acabamos também com essa maldade  de imputar à vítima de suicídio a condenação divina ou as malditas fórmulas condenatórias.

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“Amai-vos uns aos outros, assim como Eu vos amei!” está longe de ser uma fórmula de sucesso, é, antes, um princípio de empatia e resistência!

Precisamos lutar pelo cuidado coletivo!

* Diego Monsalvo, professor de filosofia e escritor

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