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Em um canto qualquer onde todos os santos dormem e se esquecem do frio do mundo, entre copas de árvores, o assobio abafado dos pássaros e o grito da cidade rasa, encontra-se também o refúgio de Pimenta. Um homem de estatura mediana, um cidadão médio, um Pimenta sem reino, meio calvo meio sóbrio e com rugas que contam histórias dos micro côvados da terra com um sorriso rouco que irradia o desejo de existência e a necessidade de se entender da vida secreta das minhocas.
Pimenta não era um biólogo, arqueólogo, ufólogo nem um professor de filosofia ou amante de física quântica, mas um jardineiro de origem, um observador curioso sobre as fofocas da natureza que insistia em cercá-lo. Sua obsessão pelas minhocas e suas vidas secretas começou de maneira estranha como ele, quando, em um dia dadivoso, se deparou com uma cena grotesca: uma abelha cinza e/ou rosa, tateando o solo úmido com suas antenas, como se estivesse cega, encontrou uma minhoca atônita a lhe olhar os beiços largos de pólen e mel. Intrigado, Pimenta vivenciou, a partir de tal fato, um mundo subterrâneo, ignorado pela maioria da qual faço parte, um mundo de minhocários, abelhas e abecedários.
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Diante de tudo isso, Pimenta sem reino, meio calvo meio a meio, se deparou com aquilo que parecia ser uma espécie nova de minhoca já ameaçada de extinção, a minhoca Lane, um verme de cor púrpura e hábitos singulares e, às vezes, plural. Por toda sua paixão, ofereceu um sacrifício ao senso de responsabilidade. Através de um meticuloso trabalho de cuidado e reprodução, a minhoca Lane ressurgiu das lamas, se lançou ao ar sem amarras e sobreviveu assim ressuscitada por um belo período nas mãos desse cidadão médio, meio barba meio sem jeito.
A música de Pimenta fez-se ouvir, esse jardineiro que desvendou um tostão de vida para a adoração desses anelídeos cilíndricos, anelados, longos e hermafroditas. Lane, ainda pairando em sua gigante mão de arranha-céu, com seu caráter e envergadura moral de uma oligoqueta, sorria pela desimportância do ato. Do húmus ao húmus e em Setembro sempre nos veremos, Pimenta ouvia vozes e criava sentidos.
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Rastejando pelo chão, ao lado de uma abelha recém-falecida ou dormindo por ofício de explorada da rainha mãe, Elizabeth terceira, ele que nunca rei ou rainha avistara, se fez junto enquanto compostagem de restos orgânicos adquiridos. Melou o tempo. Alterou o clima. Relevava as ironias de ter como discípula ou mestra Lane em suas mãos, a minhoca quase morta quase inteira (agora nos bolsos da camisa pequena que nem a barriga de tábuas cobria). Quem sabe para onde foi? Pouco caso fizeram os imundos do asfalto. As águas se acumularam nas chuvas e o rio virou uma padaria, um mercado, um hospital e uma escola, a ordem invertida das coisas quando retornam para tomar o que é seu de direito. Pimenta, Ô Pimenta, se aquiete nessa ninharia. Nem deus, titã ou herói assim esmolaria. Pimenta-barro, areia para Adão. Eva espera a costela de Lane. No princípio era a tormenta.
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