Olhar Filosófico

Picles, ético e peripatético

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Não que o pai da psicanálise assumisse de imediato, todavia, de minha parte, sempre suspeitei. Freud deixou um caso em aberto... e tudo bem, faz parte. E não foi pelo fato do nosso doutor ter morrido durante as análises (o que não aconteceu), mas, sobretudo pela intriga mental que lhe causou o quase-fenômeno-sub-relatado em suas mais diversas obras. Como sei? Sabendo. Fui o analista “senhor X” do doutor Freud (não que ele soubesse disso)!

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O caso foi o que, sob pseudônimo, chamarei de “Picles”. 

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Tratou-se de um sujeito baixo, careca e cabeludo ao mesmo tempo (isso foi um nó especulativo para Sigmund), que se vestia com um lençol branco puído, um tanto já amarelado e, primeiramente, andava pelas ruas não asfaltadas de Viena a procurar uma viva alma que soubesse cozinhar à moda grega arcaica. Não encontrando, até onde se soube, passou a se dar por satisfeito na procura por restaurantes pequenos e jeitosos onde se encontravam sujeitos prontos a debater sobre a ética dos legumes.

Esse pequeno senhor chegou a Freud pelas mãos de um dos seus grandes amigos, o senhor B. Ele não precisava de novos pacientes, seu consultório já tinha lista de espera, acontece que o caso “Picles” foi trazido pelo puro desafio da análise psicanalítica.

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- Senhor Sócrates, que satisfação tê-lo aqui. Sua fama o precede! – disse-lhe Sigmund ao recebe-lo - Ouvi dizer que é um astuto conhecedor de legumes. (Análise do “sr. X”: Confesso que para mim soou estranho, afinal, doutor Freud jamais começava assim uma sessão, mesmo quando queria “quebrar o gelo” (expressão vienense do século XIX) entre a antessala e o espaço das análises).

- Pois não, cá estou. – devolveu-lhe o pretenso Sócrates. Sobre os legumes, tens alguma informação que possas me acrescentar? Busco, por assim dizer, além dos sabores que alimentam o corpo, as ideias que correspondem à alma. Sua existência, qual seja, a ideia do próprio legume, está de forma indelével associada à verdade que tanto busco. Mas, primeiro os sabores, depois a certeza! (E tudo isso com mãos se levantando, cabeças se mexendo e nada de se sentar no divã do doutor).

- Por que não se senta, senhor Sócrates. Ou “chef” Sócrates? (Análise do “sr. X”: De novo não entendi a suposta ironia de Freud).

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- Tempo para nos sentarmos teremos muito, nobre doutor das artimanhas da mente, o que trato com urgência é a busca peripatética de sentido entre humanos e legumes. - e riu ao fim da frase.

- Pois bem, disse nosso doutor, devo lhe confessar que gostaria eu de ouvi-lo mais para que pudéssemos, aí então, aprofundarmos e debatermos o tema.

- Sigo pensando, sabe, por que meu amigo B, nosso suposto amigo em comum, me sugeriu o senhor? De fato, acredito que saibas, era-me mais útil um cozinheiro ou um “maitre”...- e coçava a barba com insistência.

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- Do que precisamos para atingir a verdade? – disse Sigmund. De opiniões especializadas ou do fundamental mergulho para dentro de nós mesmos?- e, a partir daí, doutor Freud se calou durante o primeiro encontro e foi só ouvidos para o Sócrates dos legumes. (Análise do “sr. X”: E, claro, o tal Sócrates bebera do seu próprio truque da ironia, agora, sutil e direta pela boca do senhor Freud).

- Estamos acertados então, mas suponha que sejamos coisas entre coisas e legumes à parte!? O que somos?! Aquilo que nos faz ímpares na ideia, substância e ser que se mostram em corpo e características. O legume, essa outra coisa, também subsiste como forma, todavia sua plasticidade se traveste de características outras que superam nossa consciência de análise. O que acha? - olhando para o teto da sala num dos seus cantinhos de bolor.

Silêncio. Olhares e “chef” Sócrates estava fisgado pela expectativa de respostas que o senhor Sigmund lhe devolvera desde o início…

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- Se somos, estamos e estaremos, penso no sentido pleno dos legumes. Me encantam! O chuchu, cenoura, ervilha, batata e cará … Minha tia sempre os tinha à mão. Sopas, recheios e assados eram imprescindíveis na casa de minha avó materna. (Análise do “sr. X”: E o doutor Freud anotou no pé da página de seu caderno: “Procurar ler mais Kant para refutá-lo em sua suposta resolução do problema! Que leis, senhor Kant, que leis? - e conclui - tudo flui em associações que não dependem de imperativo categórico algum!”).

- Não tenho lembrança de tempos outros que não se faziam presentes as leguminosas – continuava o tal Sócrates “in natura”. Prima Abóbora e senhora Beterraba, vizinhas de minha mãe, sempre comentavam sobre isso e de como me empanturrava de aspargos - risos do “fake” grego atemporal. (Análise do “sr. X”: Sigmund, novamente no caderninho, marcou: “Eis os desejos postos! Nada julgar ou ter como pressuposto. Vaidade das vaidades, dizia o Eclesiastes, pois eu digo, desejos e vontades! - e logo abaixo do escrito desenhou uma abobrinha.”).

- Lembro-me ainda, quando de bicicleta numa viagem à Creta, ter encontrado uma ex-namorada que comigo se enfezara por chamá-la de meu pimentãozinho. – e riu bastante antes de concluir - Imagine o senhor?! (Análise do “sr. X”: Doutor Freud quase riu discretamente de canto de boca, todavia juntou às anotações: “Meus desejos controlados e a análise surge. Pepinos, alcachofras, berinjelas etc., elementos e desejos intensos! Não vejo infância com traumas evidentes, é o início, claro, mas que eles existem, ah! Existem!! Conversar com amigo Gustav sobre repensarmos constantemente a fluidez das personalidades!”).

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(...)

Análise do “sr. X”: Fato é que assim se sucederam as sessões. Quase repetidamente dessa exata forma! Desde os gestos às palavras. Dr Freud estabelecia assim com mais precisão (e eu o analisei por 27 vezes, após seu “Totem e Tabu”) os princípios e dilemas éticos da análise. Digo tudo isso, pois “pesquei” em suas meias-palavras (e só), por dentro de seus livros tão clássicos, este caso que lhe mudara parte das ideias. Não que eu esteja quebrando meu “contrato ético” com o doutor, é porque desde então, não dando atenção aos cuidados sugeridos pelo próprio “mestre”, passei a um vício contumaz: sopa de mandioquinha com pão de beterraba. (Anotar o caso “Picles” com mais cautela).

Assinado, Sr X ou Platão amorfo - Mogi das Cruzes/SP, 2019.

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