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No dia 07 de Maio, o Diário do Litoral publicava a notícia da morte do senhor “Osil Vicente Guedes, de 49 anos, que foi espancado em Vicente de Carvalho, no Guarujá, após ser falsamente acusado de roubar uma moto.” (“Tristeza e revolta: vítima de fake news em Guarujá tem morte cerebral confirmada”, DL, 07.05.2023)
Acusado sumariamente por um grito de “pega ladrão!”, ele foi espancado com socos, pontapés, paus e capacetes de motocicleta. Osil, não foi a primeira e não será a última vítima de propagação de mentiras e linchamentos no Brasil.
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Os linchamentos são atos deliberados cometidos por pessoas que, de forma imediata ou premeditada, se juntam para um mesmo fim, qual seja, a prática de violência física e/ou psicológica na forma de justiçamento (punição com as próprias mãos) e vingança contra aquele(a) que, supostamente ou realmente, tenha cometido algum crime contra o direito ou a lealdade de um grupo ou de alguém. Tal ato covarde, vil, se configura, juntamente com a própria pena de morte, ato de maior insensatez, ódio extremo e normalização da barbárie no meio da comunidade humana.
A sensação de estarmos e vivermos em grupos nos cobra, estejamos conscientes disso ou não, a busca pela afirmação constante de nossas vontades por meio do reconhecimento de nossa identidade pública. E se partirmos do princípio de que vivemos num mundo desigual e fugaz que parece expor ainda mais nossas fragilidades, não é difícil imaginar o poder exercido em cada um pelas ações coletivas (produtoras de novas e intérpretes de antigas ideologias) que trazem um apelo de pertencimento. O clube de futebol, a família, a comunidade religiosa, o partido político, a exclusividade num banco, a ala vip de um show, a tribo urbana, os vícios e trejeitos de um ídolo etc etc e até o entendimento de nobreza por “morrer pela pátria (e viver sem razão)”.
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Pouco a pouco, vamos nos conhecendo e nos encontrando à vida íntima e social, com traumas e delícias, de grupo em grupo, de fase em fase, de hormônio em hormônio, na idade e no tempo e na amplitude do conceito de cultura com alguma sabedoria prática e intelectual acumuladas. Isso, cada um, ora ninguém, quem sabe a maioria. Fato é que a ignorância espreita e por momentos de maior apelo de pertencimento e do aumento das desigualdades e fraturas sociais, num sistema que se nutre disso para enriquecer e promover aqueles poucos que se colocam como exemplo no topo da pirâmide econômica, a frustração do indivíduo volta a expor com violência sua vontade de sangue, suas faltas morais, seu passo atrás à humanidade que não mais lhe atrai. Ei-lo pronto a obedecer comandos, adestrado a se submeter às teorias conspiratórias, a cultivar a ignorância fazendo valer a “opinião publicada” em redes e fakes sociais, a repetir a resposta pronta do pastor que já foi ao inferno e por isso vende agora pedaços do céu, a fazer a coreografia divina com o padre de harmonização facial, batina medieval e arroto de “whey protein”, a ecoar os gritos dos justiceiros, sejam eles os “heróis” da Marvel, os "caubóis" americanos ou os integrantes do “ufc”, aos gritos do jornalista desse Brasil onde tudo é urgente, aos juízos do apresentador da cidade sempre alerta ao alerta nacional, ao “apito de cachorro soprado” por aquele espectro vazio exposto como “mito” pelas mãos de qualquer confraria de milicos com fraldas geriátricas e próteses penianas (poder que falha, fálico). Anos do puro caldo de indignidade institucional autorizada. Homens de gênero, de armas, sobretudo, doentes orgulhosos pelo machismo e herdeiros infames do patriarcado. Homens, sobretudo. Que esperam sempre à espreita uma brecha para mostrar seu orgulho de ser tosco. Homens, sobretudo. Sobretudo, ainda mais violentos contra aquelas que lhes disse não, sobretudo aquelas. Mulheres, sobretudo. Úteros, fibras e um suave som pelas trompas de falópio para que façam ter ataques o gênero "hetero top". E homens, sobretudo, homens, a provar que são machos, antes de ser gente.
Assim, num país violento, de violentas desigualdades e costumes violentos, não nos acostumemos, nunca nos acostumemos (como profissão de fé), aos linchamentos jurídicos, morais, físicos e àquele mais recente do senhor Osil Vicente Guedes. Uma crueldade organizada como cultura de morte. “Pega ladrão”, “pega ladrão”, “mata”, “mata” e ninguém sequer lembrou, viu, falou: Eis uma vítima e muitos assassinos! Sobretudo, assassinos! Já não havia Estado, já não havia Justiça, Humanidade já não havia. Celulares contemplavam um espelho quebrado e cada like era um gol.
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