Olhar Filosófico
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Aquele tiro não era para mim. A bala, digo. Só suspeito. Aquela bala. Bem entre as orelhas, como dizem os malandros. Me pegou e fui apagando. E dormi o sono dos eternos, só. Nada mais. Nada demais. É até aí que posso narrar para ser condizente ao fato antecedente à minha morte. Se descrevesse o depois disso, seria uma cópia mal feita e ofensiva ao Brás Cubas.
Antes do meu assassinato incerto, vi um farol de carro me ofuscando, ouvi um ruído de lata e um peido. Ao menos assim me soou aos ouvidos. A garoa estava insistente e não era para eu estar ali. Uma rua que nunca passei. Caminho que quis para caminhar uma distância maior a fim de exercitar um corpo esquecido de si mesmo. Não levava o boné que tanto uso. Todo azul e branco e, no centro, bem na parte da frente, um corvo segurando o emblema do San Lorenzo de Almagro. Tinha ficado no painel do carro desde a manhã passada.
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Naquela noite, só desejei andar até o bar e do bar voltar para casa. Nada mais. Nada demais. Sou o cidadão que na vida está como quem sabe que não devia, mas tem medo de desapontar a natureza e não morre pelo querer próprio.
Sabia que já passava das dez da noite. E, então, escolhi aquela rua. Ninguém andava ali naquele momento. Três, quatro passos e caí.
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A bala me acertou como o impacto de uma pedrinha. Uma besteira. Nem senti de fato algo mais que um pingo d’água na testa. Nos minutos seguintes, eu no chão, olhando a poça, não trocaria por outro momento vivido.
Dizem que os olhos são janelas da alma e que o limite dessas janelas formam o nosso espaço. O que o olho enxerga e o corpo toca, a mente simboliza. E daí, para os significados do mundo é um pulo. Caí como quem desaba solto por inteiro, sem travas. Desestruturado, solto. Pernas, braços, ares em queda. Sem travas. E, defronte à poça, vi o que não imaginava um olho nu poder enxergar. Aquele tantinho de água preso por um pequeno buraco no asfalto, produzido pela violência dos elefantes de ferro e fumaça, me fez ver o fim. Não sei se o sentido de fim mesmo me veio à mente ou uma outra invenção de uma vida de desculpas. Palavras faltam. Nem precisam. Mas era, finalmente, só sentido. Pele e mais aquilo por dentro da gente. Querer e estar coincidiram ali, na quietude, sem dor, fatal. Um contato entre todo represado e mim. Em silêncio. Erro banal e no acidente uma vida autêntica. Justificada. Sem paradoxos. O universo numa poça d’água!
(In: MONSALVO, D. A. O universo numa poça d’água. Tarumã: E-Liber, 2024)
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