Olhar Filosófico
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Não é de agora que se confere atributos subjetivos poderosos, ainda que sádicos ou asquerosos, a entidades ideologicamente construídas que na prática do dia a dia não podem mostrar sua cara materialmente feia e desumana nas ações humanas de onde brotam e se refastelam.
O filósofo contratualista inglês, Thomas Hobbes (1588-1679), por exemplo, evocara um ser mitológico dos mares imerso na narrativa bíblica, o Leviatã, para ilustrar o Estado, essa figura opressora e onipresente sobre nossas vidas de simples cidadãos pagadores de privilégios alheiose domadores de leões, como outrora numa Roma e seu Coliseu.
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Assim, hoje, é também o mercado! Em grande medida, esse mítico ser onisciente e onipotente que tudo toca e transforma em ouro e ainda mais em lama, é palavra-deus na boca de lobo de todo aquele que assina sua ignorância com a ganância do senhor de engenho.
O mercado, conjunto de práticas comerciais e financeiras, onde os produtos viram mercadorias, comandado pelos operadores do dinheiro oriundo de seus meios de produção, a envolver juros, especulações e lucros sobre a desvalida vida do trabalhador que tudo produz e nada retém para si, a não ser a subsistência orgânica e a subnutrição cultural alimentadas por colheradas generosas de alienação política produzidas, principalmente, por esse mesmo mercado num processo cíclico tenebroso.
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O grande e incomparável cantor da teologia popular, padre Zezinho, versificara assim em sua canção “Idolatrias”: “Na praça do Pantheon/ Há uma luz de neon/ Anunciando o evangelho do mundo/ E a luz do mundo me diz/ Que se eu quiser ser feliz/ Eu devo poupar/ Eu devo gastar/ Eu devo comprar/ Milhões de luzes que acendem e apagam e acendem/ E me dizem de novo/ Que o grande Deus capital/ Afinal não é mal pois venceu outro mal/ Mas não aceita outro Deus”. Eis que deve parecer mesmo aos mais incautos que tudo na vida se resume a comprar e vender segundo o comando e auspícios da bolsa dos valores não morais que tudo faz render e nada produz.
Como registrara o maior estudioso do cotidiano medieval do Ocidente, o historiador francês Jacques Le Goff (1924-2014), já na Idade Média, foi difícil estabelecer uma aceitação razoável da usura, a alma do mercado, dentro dos moldes cristãos católicos. Tentando encontrar e se basear nas palavras da Bíblia sobre as ações do cotidiano, palavras buscadas também como princípio de Direito e lei moral irrefutável, as autoridades políticas, e sempre religiosas, medievais, sustentavam que frente a usura que avançava no dia a dia das cidades e com seus mercadores e seus juros emprestados como dívidas aos empreendedores do novo caos e aos trabalhadores em processo de autocombustão, era necessário um freio legal e ético. Sobre isso, por exemplo, “A decretal Consuluit de Urbano III (1187), integrada no Código de Direito Canônico, expressa melhor, sem dúvida, a atitude da Igreja diante da usura no século XIII: ¾ Usura é tudo aquilo que é pedido em troca de um empréstimo além do próprio bem emprestado; ¾ Receber uma usura é um pecado proibido pelo Antigo e o Novo Testamento; ¾ A simples esperança de uma devolução de um bem, além do próprio bem, é um pecado; ¾ As usuras devem ser integralmente restituídas a seu verdadeiro dono; ¾ Preços mais elevados por uma venda a crédito são usuras implícitas.” Ou seja, de sobretaxas à especulação de mercado; de juros compostos a agiotagem cambial tudo está ali presente na crítica impiedosa. É claro que com a sustentação de caráter religioso e não ainda dentro da própria crítica econômica pertinente de parte dos pensadores Modernos.
Para não precisar sempre voltar para tão longe parecer, novamente me fio na música para transparecer a fantasmagoria do mercado, aquilo que não é Carcará, mas também “pega, mata e come”. Canta a Tribo de Jah em versos claros e objetivos para os nossos dias de Agro é Pop e Coaches Gratiluz de investimento: “Degradação moral e ambiental/ Fruto da mesma ação nefasta/ De um sistema irracional/ Que polui, degrada e devasta/ Os mentores da ordem econômica/ Defensores de teses anacrônicas/ Senhores do saber e da razão/ Semeadores de destruição/ Almejam o lucro a todo custo/ Apreciam o conforto, o bom gosto e o luxo/ Não percebem o drama, o sinistro sinal/ A bomba relógio do aquecimento global”.
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O mercado é o produto Moderno do capitalismo mais bem acomodado em todas as esferas de poder, uma vez que condiciona a cada um de nós aos tipos e possibilidades de vidas a se levar. Entre o “deixa a vida me levar” e o “sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu”, estão a ideologia e a determinação dos donos do mercado que nos rodeia e nos consome. Sou livre para comprar o que o mercado vende, e, vendo-me assim, ainda compro para me libertar daquilo que o mercado quer. Cíclico, cíclico, cíclico...
Se, por algum momento, um cidadão de posses, de uma dentadura ou de um consultório dentário, achar que ao investir na bolsa o fez parte do tal mercado, de uma vez por todas, grito, se não possuis os meios de produção a dominar e usufruir da mão de obra alheia e sua investidura de valor e preço aos valores das coisas, não és nada para o zeus-mercado, nada! Será, quando muito, pequena burguesia a arrotar caviar comendo ovo branco, igualzinho a cor do SUV comprado para se achar parte da autocracia dos Emirados Árabes. Como lembra Cazuza: “A burguesia não tem charme nem é discreta/ Com suas perucas de cabelos de boneca/ A burguesia quer ser sócia do Country/ A burguesia quer ir a New York fazer compras”.
E se ainda assim achar que o mercado fica nervoso, tenso ou apreensivo, lembre-se do filósofo Karl Marx (1818-1883): “Em qualquer manobra ardilosa no mercado acionário, ninguém ignora que uma hora ou outra a tempestade chegará, mas cada um espera que o raio atinja a cabeça do próximo, depois de ele próprio ter colhido a chuva de ouro e guardado em segurança. Depois de mim, o dilúvio! É o lema de todo capitalista e de toda nação capitalista.”
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Sobre as costas dos famintos se alimenta o burguês mercado!
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