Olhar Filosófico

O dedo duro

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Quantas andanças. E de tantas, uma recente chamou mais a minha atenção.

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Era noite escura. Mas sem temor ou medo geral. Nada disso. Gosto do escuro. Diria até que sou fã dessa escuridão que habita ao nosso redor. Uma escuridão que envolve e aspira gás carbônico e devolve mistério. Quem dera fosse eu parte dela como ela é de mim. Sou produto de obviedades e dia a dia. Do riso calculado em boletos e da brincadeira marinada no desespero. E essa é a existência. Talvez os animais fujam dessa lógica, as plantas talvez também, as pedras com certeza.

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Noite escura. Beira d’água. Andança e olhar ao chão, aos pés. E sinto uma espécie de graveto a cutucar minha sola esquerda. Precavido na arte de andar descalço em praia que esconde siri, chutei instintivamente para longe do mar aquele, até então, pedacinho de madeira desavisado do fato de que ali pisava um niilista convicto.

E por pura curiosidade, fui ver aquilo que tinha mandado para longe. Uns três metros, em meus cálculos de engenheiro de obra pronta, técnico de time rebaixado. E fui me achegando entre a raiva e a adrenalina já na marcha ré. Olhei uma vez: graveto mesmo. Olhei uma segunda: acho que é graveto mesmo. Na terceira, definitivamente, não era um graveto, pensei algo mais próximo de uma garra de siri. Mas cadê a pinça? A assustadora pinça!

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A noite parecia ainda mais escura, em que pese uma certa claridade de refletor de luz amarelada ao fundo. Limpei os óculos na camisa já encharcada de suor e areia, coloquei novamente na cara e fui agora constatar de ultra perto aquele achado que agora me intrigava mais do que entender se somos um nada num conjunto radiante de nadas com vontades incontroláveis e previsíveis ou se somos coisas maravilhosas rodeadas de um grande nada silencioso com uma vontade incontrolável de nadificar todas as coisas maravilhosas. Intrigadíssimo, portanto.

Era ligeiramente branco-alaranjado, meio escuro e roliço alquebrado (se é que me entende). Com um dos meus dedões do pé (só para constar, eu tenho dois), o direito, que não demonstro muito domínio de coordenação, empurrei levemente aquilo, agora em minha cabeça “elevado” à categoria de coisa. A coisa rolou umas três vezes até parar e ficar ainda um pouco mais curvada, numa posição de que me lembrou a de um anzol. Dei um pequeno passo à esquerda, me inclinei um pouco mais para colar os olhos mais pertos e: Caralêo!!!! Gritei sem nenhum pudor. Sem pensar em um qualquer que pudesse ouvir. O susto foi tanto que se eu não tivesse sido preparado pelo meu instinto mais primitivo da precaução e da curiosidade, teria me cagado ali mesmo! Um dedo!! Um dedo, pôrra!! Era um dedo! Um dedo humano! Um dedo humano feio e meio inchado! Na base de onde ficam os anéis, um corte reto! Sem carne ou ligamentos pra fora. Um dedo!! Um dedo!! Você imagina o que é isso?! Um dedo na praia?! Sem o corpo, óbvio! Um dedo. E agora??!! Conferi rapidamente os dedos das minhas mãos, vai que uma nova doença se manifestara e meus dedos começaram a cair como blocos de legos desencaixados. Mas não, todos estavam lá e como que juntos num coral a cantar: Ufffaaa!

Pensei desesperado e tomado de uma descarga de pavor se deveria ligar para a polícia. Dei uns quatro passos largos e parei. Pensei novamente se deveria ligar para a polícia. E se fingisse que não vi? Praia razoavelmente vazia… Mas e o grito? Foi uma chave de cadeia, confesso. Alguém poderia ligar o ato à coisa e eu já vi isso acontecer em filme que ganha Oscar, um cara acusado injustamente que vai mofar na cadeia esperando a Susan Sarandon vir salvá-lo desse mal social. Mas ainda estava parado. Atônito, agônico, antônimo de mim mesmo! E se eu chutasse aquela péssima surpresa de volta ao mar? Daqui a pouco, ele apareceria novamente para um outro-eu desavisado pisar, chutar pra longe e se pegar pensando o que deveria fazer com aquele início de humano. Confesso que pensar que poderia sobrar para (mais) alguém, pesou muito na minha consciência moral e antes de qualquer decisão, voltei ao dedo. Calmamente voltei ao dedo. Pelo que pude perceber, não estava em estágio de putrefação, mas também não era um órgão com irrigação sanguínea tão recente assim. Mas, agora, o que mais alterou os sentidos do meu corpo e os desejos da minha alma, era o fato de que aquele dedo parecia ter mudado levemente de posição. Refiz meus passos na areia desde o toque do meu dedão naquele dedinho, pé por pé, marca por marca, e, sim, ele havia mudado de posição.

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O fato novo era um apontamento, literalmente um apontamento: a ponta daquele dedo apontava pra mim! Para onde quer que levemente eu me movesse, ele apontava pra mim. O que era aquilo? Um dedo vivo? Um dedo delator? Um dedo indelicado? Um dedo duro?

Chamei a polícia, pegaram meu depoimento na hora e sem grandes novidades, pediram que ficasse à disposição para qualquer dúvida sobre o achado e se foram. Eu me fui.
Não soube de quem era o dedo. Se de homem, de mulher, de silicone ou borracha. Mas, até agora, aquela cena me persegue, me alucina, aquele apontamento apontava para onde de mim? O que aquele dedo duro viu que eu não vejo? Para onde de mim?

Lembrei-me de imediato do poeta que dizia “nenhum homem é apenas um dedo, cada homem é uma parte de algo que não sabemos, uma parte desgarrada da Terra com sede de voltar ao seu útero. Se um pedaço de si é arrastado para o mar, a ilha fica diminuída, e a ressaca sempre traz de volta como uma premonição, como o sol do meio-dia de teus amigos ou a tua própria lua. O dedo apontado para qualquer homem me diminui, porque sou parte de pequena parte do tal gênero humano. E por isso não perguntes para quem os dedos apontam, eles apontam para ti.”

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Mas, então, aquele apontamento apontava realmente para mim? Para qual mísera parte de mim? O que aquele dedo duro viu que eu não vejo? É você? E agora, José, para onde?

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