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“Nenhum jovem deve demorar a filosofar, e nenhum velho deve parar de filosofar, pois nunca é cedo demais nem tarde demais para a saúde da alma. Afirmar que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou é a mesma coisa que dizer que a hora ainda não chegou ou já passou; devemos, portanto, filosofar na juventude e na velhice para que enquanto envelhecemos continuemos a ser jovens nas boas coisas mediante a agradável recordação do passado, e para que ainda jovens sejamos ao mesmo tempo velhos, graças ao destemor diante do porvir. Devemos então meditar sobre tudo…”
Foi após ler essas palavras recolhidas do filósofo grego Epicuro, que Malaquias mandou o mundo à merda. Não quis mais saber de Antônia ou Judith, desligou-se do futebol e passou a indagar-se sobre quanto tempo havia perdido torcendo para sua, até então, gloriosa Associação Ferroviária de Esportes e, acima de tudo, como uma espécie de auto ingratidão, desistiu por completo daquele curso (de expectativa) que nunca faria de “Mandarim para valentes e arrojados do mundo dos negócio futuros.”
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Enfim, Malaquias agora era só um funcionário público sem pretensão de carreiras e com um pensamento claro e límpido como a boa água: inodora, insípida e incolor. Deixou de lado as projeções e comprou um peixe que, depois de muito refletir, soltou num rio perto de sua casa alugada. Não tendo mais pretensões maiores do que aquelas de comer, beber e dormir o suficiente feito um porquinho-da-índia, buscou apaziguar de vez seu coração.
Num dia azul e lilás, com céu da cor de cobre, Malaquias descobriu o inusitado. Vivendo como quem pouco sonha e pensando como quem pouco inventa, eis que um cão manco lhe apareceu às vistas derramando-lhe impropérios. Três tapas na própria cara para acordar de um pesadelo desperto, mas, que nada! Estava muito bem acordado e o cão era real e debochadíssimo. Malaca, disse-lhe (supostamente gargalhando) aquele cão, já pensou na diferença que nos separa? E nosso sujeitinho deu mais três tapas na própria cara, agora um pouco mais caída a mão ao pé da orelha. Mais uma vez, que nada! O cão urinou de tanta risada e em meio a latidos, grunhidos e fome de morder canelas, só gritava, Malaca, como “tu” é burro!!
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Malaquias resolveu comprar a ideia de responder, por meio do vocabulário humano, ao tal cão manco e desagradável. Amigo, desde quando anda falando? No que o “au au” respondeu, desde sempre sua besta!! Ou é só você quem pensa que cão não fala? Todo cão fala e todo humano late, a diferença - aliás, como há pouco te perguntei - é que nós, os caninos, temos preguiça de humanos. Se a gente falasse a toda hora, logo seríamos, por culpa de vocês, pais e mães de família, amigos de boteco e futebol, “influencers”, “coachs” e “tiktokers” idiotizados e trabalhadores escravizados dessa escrotidão do capital. Entendeu, sua foca? Agora, por outro lado, vocês imitam cães e riem, gravam vídeos e mensagens (duvidosas) carinhosas, ou seja, nossa espécie em milênios nunca viu animal mais imbecil!!
Malaquias, entre - ainda - perplexo e enfurecido com aquela figura manca, soltou o verbo de volta ao linguarudo da ocasião. Bicho, vai procurar tua turma e não me enche. Essa palhaçada já me cansou. Garanto que não sou só seu a nunca ter visto cachorro falar, ainda mais de forma tão desbocada como a sua. Para sua sorte, já não ligo pra muita coisa e, no fundo, você até me diverte por ser tão tosco e vazio de qualquer educação. Sou epicurista, para seu governo. E o cão, sem parar para pesar as palavras ouvidas, soltou mais petulâncias, e agora com referência filosófica e tudo. Malaca, seu paspalho, “Não vedes esses rostos tétricos que os estudos filosóficos ou que as dificuldades dos negócios fazem envelhecer antes de tempo, porque a cogitação assídua acaba por azedar o espírito e por exaurir a seiva da vida?”.
Num pulo pra trás, Malaquias, pasmo, exclamou ofegante, Cão, Oh! Cão manco, desde quando pratica a filosofia? É um seguidor tardio do grande Erasmo de Roterdã? Malaca, meu velho débil, fui durante anos companhia de um polímata que tinha mais dúvidas do que respostas e um dia pirou de tanto pensar. Agora moro nas redondezas de um hospital psiquiátrico onde todo santo dia um palhaço vem me perguntar se falo de verdade e se leio ou decoro filosofias. Onde todo santo dia um paspalho me indaga e se irrita com minhas respostas. Onde todo santo dia um epicurista vem ao meu encontro e faz as mesmas colocações entre o espanto e ódio. Por sinal, vai deitar que já já chega a Lua e à noite todo cão é vagabundo, lhe garanto.
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E Malaquias, nosso desajeitado filósofo de ocasião que mandou pastar o mundo num basta!, num chega de tudo isto!, se recolheu à sua insignificância uivando como um niilista.
O cão, o cão, o cão, o cão… fala!, gritou um gago enquanto um ônibus passava e ninguém mais ouvia. E o tal ser manco desapareceu na penumbra daquele dia quente.
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