Olhar Filosófico

Ninguém ressuscitou

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Recentemente, um fato chamou a minha atenção para a linha tênue que separa o real do imaginário em nossa coletividade, principalmente, em muitos ambientes de fé onde abundam pedidos de submissão e falta de bom senso por parte de todos os envolvidos.

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Um pastor, de uma pequena cidade do centro-oeste brasileiro, deixou por escrito aos seus fiéis seguidores que ressuscitaria no terceiro dia após a sua morte. Dentre outras coisas, disse, ainda, que nem mesmo o seu corpo morto e, penso eu, entregue a certeza natural dos vermes (como não lembrar de Machado de Assis em seu Memórias póstumas de Brás Cubas?), entraria em decomposição, permanecendo numa espécie de limbo ou preparação espiritual (não ficou muito claro). Pois bem, enfim, infelizmente ele morreu.

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Esposa, familiares e féis foram fazer vigília à espera da tão aguardada ressurreição! 

Até a funerária, ignorando padrões de correta conduta sanitária, manteve o corpo refrigerado (senti um certo tom de trapaça, mas tudo bem) por três dias à espera do milagre. Por óbvio, ele não ressuscitou. Como diria Ariano Suassuna pela boca do matreiro Chicó, “cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.”

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Todo esse acontecimento que envolveu pastor, esposa, fiéis, seita e atração, me fez outra vez refletir sobre quatro aspectos comuns da vida ocidental Moderna que se repetem em diversos campos da ação humana: a sensação de vazio, a desfaçatez e uma necessidade por aceitação e privilégio.

Na sociedade em que vivemos, do consumo e da felicidade a qualquer custo, um dos sentimentos mais comuns é o de um (falso) vazio existencial. Somos estimulados a preenchê-lo comprando tudo (e todos) sem nos darmos conta de que esse fenômeno (econômico, político e ideológico) foi feito sob medida para se retroalimentar. Isto é, criam-se necessidades sistemáticas por interesses escusos e diversos, e nos sentimos obrigados a satisfazê-las. É a alienação automatizada da sociedade do espetáculo. Em todo esse processo, sou um consumidor, jamais uma pessoa. E, sem perceber, lá se foi a minha autonomia. 

A desfaçatez não fica atrás de todo esse (falso) vazio, uma vez que o bom senso (a coisa do mundo mais bem distribuída, segundo o filósofo Descartes), parece ter sido abandonado por grande parte da nossa população. Impulsionados pela cultura do bruto e do grotesco, de reality shows à bolsa de valores e redes sociais, não percebemos a espiral da impetuosidade ignorante da qual somos vítimas.

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A busca por aceitação dos outros, sem passar antes pela experiência primordial do “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”, eternizada no aforismo do Templo de Delfos, será uma busca pelas migalhas de nós mesmos espalhadas tal qual pedaços de um espelho quebrado.

E, por fim, num ambiente baseado na propaganda do acúmulo material como bem maior e felicidade plena, a política da vantagem assume o poder das chaves que abrem o céu. Querer o privilégio é ignorar direitos, propagar a desigualdade social, banalizar os afetos e mascarar a maldade.

Tudo isso me lembra “Fátima”, aquela grande canção do Renato Russo e Flávio Lemos:
“E de repente o vinho virou água/E a ferida não cicatrizou/E o limpo se sujou/E no terceiro dia ninguém ressuscitou.”
Meus sinceros sentimentos à família do pastor.

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