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Naquele dia, exatamente naquele dia, discutimos feio. Não aguentei e revidei aquele palavrório de sempre. Eu não falava alto, mas gesticulava bastante e de tal maneira que chegou a se assustar. O acalmei. Disse, mais do que uma vez, que não chegaríamos às vias de fato, mas, de fato, as vias estavam abertas para uma discussão mais ampla, além da estreiteza daquelas certezas que despejava sobre mim.
Dizia ele, aliás, diria sempre, que a consciência das coisas nasce do fato de sabermos, intuitivamente, tudo como extensão do todo daquilo que somos. Repetia muitas vezes, talvez, vim a questionar-me depois, para assegurar-se de que aquilo que sustentava era um fato consumado, dado como certo, lógico e definido.
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Sempre pensei que aquele blá blá blá egoísta e monocórdio, refletia a insegurança de alguém que não conseguia pensar fora de uma ideia que, de tão ostensivamente repassada, forçava a visão do mundo, unicamente, como matéria extensa da mente, vista, plenamente, como toda a consciência humana.
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Fato é que, até aquele dia, não discutíamos, pois, da minha parte, não valia a pena gastar tempo, vida e saliva para se contrapor a esse terrorismo da mente sobre tudo e sobre todos. E entendo que muitas vezes não percebemos que nossa visão antropológica do mundo determina a maneira de encararmos todas as nossas escolhas e reformularmos nossas ideias.
Por exemplo, certa vez, uma grande ação trágica dependia da tomada de decisão rápida e certeira de uma pessoa que detinha certo poder para impedi-la, ou no mínimo, diminuir os efeitos negativos de seu resultado. Acontece que a pessoa em questão, por não ceder na ideia de que tudo é extensão daquilo que de fato pensava, acreditou para si que a ação, por demais contingente, não traria grandes traumas aos sujeitos envolvidos uma vez que cada qual poderia remanejar a compreensão do fato e entender o que realmente aconteceu. Eu lhes digo o que aconteceu, um ato, um fato e uma responsabilidade por algo baseado nas motivações de indivíduos, ou seja, nós organizamos as ações na materialidade do mundo conforme as circunstâncias dadas. Não é o vento, o som dos pássaros ou a ferocidade das marés que causam a demanda de julgarmos algo como bom ou mau, mas, sim, a maneira que recebemos e respondemos a essas ações. Recebemos e não projetamos.
Daí que alguém pode me dizer com veemência, mas como ser sem se projetar? Respondo, deixar ser e avaliar o visto pelo que é. E, então, poderá esse alguém me retrucar, viu, a interação existe e o fenômeno de estender a mente à realidade das coisas é indubitável. De forma que eu responderia, pois bem, a interação é um fato, já a perspectiva de análise sobre aqueles que interagem precisa buscar o interior da ação e ela ficará explícita. Explico, antes de analisar, julgar, proceder, sustento, proceda, analise e julgue. O instinto aguçado é o elemento chave para a animação da consciência e não o contrário. Precisamos, então, educar-nos pelo instinto. Chegarmos ao cerne do momento presente, material e sentido pelos poros da pele. A dor, o sofrimento, a reação do corpo são os elementos que me levam a defender que tudo é, antes de pensarmos como deveria ser.
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E, portanto, naquele dia, como iniciei dizendo, discutimos feio. Ele paciente, eu sem paciência. A maneira que ele ia reproduzindo e repetindo o pensamento que parecia enobrecer sua consciência e vê-la detentora da verdade, me levava à compreensão da miserabilidade daqueles que pensam possuir a pedra filosofal. Sentir o que somos, agir como estamos e entender que sabemos no e pelo corpo as possibilidades da mente. Uma nova ética poderia surgir, refletia depois em quietude nos mal traçados desenhos que fazia inconscientemente nas anotações enquanto não mais o ouvia. E disse basta!
Tranquilo e só, por fim, lembrei-me daquela passagem do filósofo inglês David Hume (1711-1776), “Mas, embora nosso pensamento pareça possuir essa liberdade ilimitada, um exame mais cuidadoso nos mostrará que ele está, na verdade, confinado a limites bastante estreitos, e que todo esse poder criador da mente consiste meramente na capacidade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que os sentidos e a experiência nos fornecem.
Quando pensamos em uma montanha de ouro, estamos apenas juntando duas ideias consistentes, ouro e montanha, com as quais estávamos anteriormente familiarizados. Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois podemos conceber a virtude a partir de nossos próprios sentimentos, e podemos uni-la à forma e figura de um cavalo, animal que nos é familiar. Em suma, todos os materiais do pensamento são derivados da sensação externa ou interna, e à mente e à vontade compete apenas misturar e compor esses materiais.” (HUME, David.
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Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. SP: UNESP, 2004).
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