Olhar Filosófico

Naquele canto, minha toca

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Não me perguntem o porquê, pois estava eu ali. Naquele canto de sempre, observando a rota das escolhas dos outros, abismado de todo valor aplicado a tão pouco, usando de minha baixa energia para sustentar meu sorriso. É dor e passeio. Vida seguindo plena trabalhando intensamente sem começar ou findar, pois, organismo que vive, não morre. Aquilo que chamamos morte, renasce, ou melhor, transubstancia, efeito para causa de substância outra. 

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O pai em mim, por exemplo, vaga efeito ar que respiro e repasso, jogo no universo de matérias e aromas entre os minúsculos subatômicos e os maiúsculos sistemas. Pai que não virou poeira, ou algo que o valha, é esporo, pólen e gota d’água a cair em Madri, ou secar em Marte. A mãe em mim, seguindo em grão de areia que piso e lavo dos pés. Encontra lençóis freáticos e errática, mergulha no São Francisco. Não há túmulo que sustente a morte. Liquefação da alma às raízes das plantas miúdas e das jabuticabeiras em fruto. Vida abunda em suplício daquilo que pensar a morte cobra em esperança. Vencer o paradoxo.

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E no momento do olhar mais atento, de novo o coelho branco. Eu naquele canto de sempre. Relógio no bolso do colete, apressado, passou outra vez por mim. Efeito retardado ou borboleta? Efeito doppler do observador frente à espera? E como corria o coelho! Mas a toca era novidade e o diâmetro daquele buraco, ousadia. Caído de corpo fui. De lado e olhando tudo como Alice "das Maravilhas" fizera em mais um daqueles sonhos lúcidos que trago: “Ou o poço era muito fundo, ou ela caía muito devagar, porque enquanto caía teve tempo de sobra para olhar à sua volta e imaginar o que iria acontecer em seguida. Primeiro, tentou olhar para baixo e ter uma ideia do que a esperava, mas estava escuro demais para se ver alguma coisa; depois olhou para as paredes do poço, e reparou que estavam forradas de guarda-louças e estantes de livros; aqui e ali, viu mapas e figuras pendurados em pregos. Ao passar, tirou um pote de uma das prateleiras; o rótulo dizia “GELEIA DE LARANJA”, mas para seu grande desapontamento estava vazio”.

Cheguei a tocar o pote, já solto por Alice que mentiu ao dizer que não soltaria. Mas não era mais de geleia, senão absinto, que li: embriaga enquanto bebida e assossega enquanto chá. Estranhas sensações do corpo que habitam a mente. Morfético, morfético estarei sempre. No mesmo canto, lugar. Já entre os gregos, como Platão sugeria, phármakon era o teor da palavra, se na dose certa, cura, em excesso, mata ou faz transbordar. 

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Esperança minha querer o tempo passar, mas tempo mesmo não passa, é a cabeça que não se deixa parar. E eu sou da quietude, daquele silêncio no meio de nós, daquela palavra pensada e esquecida antes de apresentar-se em nome. Esse meu desajuste me ilumina de toda luz que quando de tanto olhar me cega. Do caos ao cosmos e não do nada ao ser, pois coisa nenhuma do nada é, sempre já é desde antes. Do caos ao cosmos é ajuste e desajuste, assim me permito um céu. Lembrando que até aqui, nada de loucuras, somente a clareza do que disse antes, de transubstanciação de coisa em gente e depois em ar, água até ou mistura de elixires. 

E eu naquele canto de sempre. Observador do espaço que sou, forço com meus braços a aparição da graça, milagre da matéria para a matéria que beira o sublime, mas não se impede à gravidade. Lembrando ainda de quando pensou Kant, o ilustre filósofo central da Königsberg suburbana, sempre nos teceremos nos juízos, povo que somos da medida de tudo, ora julgamos fato, ora julgamos valor. Um carro passou na rua, um fato! Um carro feio passou na rua, um valor! E para quem estático se encontra estético, também me vi naquele tribunal que como disse, ou sonho ou história, estava a suspirar os arroubos de Alice “das Maravilhas”: O Coelho Branco pôs os óculos. “Por onde devo começar, por favor, Majestade?” perguntou. “Comece pelo começo,” disse o Rei gravemente, “e prossiga até chegar ao fim; então pare.” Fez-se um silêncio de morte no tribunal enquanto o Coelho Branco lia estes versos: Soube que de mim com ela falaste/ E com ele foste me intrigar,/ Ela disse que tenho engenho e arte,/ Só é pena que não sei nadar./ Ele mandou dizer que eu partira (Sabemos que tinha razão)./ Se ela descobrisse a mentira,/ Qual seria tua situação?/ Dei uma pra ela, pra ele dei três;/ Tu nos deste cinco ou mais./ Todas voltaram dele outra vez/ Mas a mim não chegaram jamais./ Se acaso em toda essa questão/ Ela ou eu andássemos metidos,/ Ele sabe que os livraria da prisão/ Plenamente absolvidos./ Sabe, eu andava desconfiado/ (Antes do teu ataque)/ Que tu trocavas de lado/ Entre ele, eu e nós a cada baque./ Não lhe contes que ela lhes deu sua aprovação,/ Pois este sempre será/ Um segredo, guardado no coração,/ Entre ti e teu amigo cá. “É o depoimento mais importante que ouvimos”, disse o Rei, esfregando as mãos; “portanto agora deixemos o júri…”. “Se alguém conseguir explicar esses versos”, disse Alice (crescera tanto nos últimos minutos que não sentia nem um pouquinho de medo de interrompê-lo), “dou-lhe seis pence. Eu não acredito que haja um átomo de sentido nele.” Os jurados em peso anotaram em suas lousas: “Ela não acredita que haja um átomo de sentido neles”, mas nenhum tentou explicar o documento. “Se não há nenhum sentido neles”, disse o Rei, “isso nos poupa um bocado de trabalho, não é mesmo, pois não precisamos tentar encontrar nenhum.”

E, como o rei, também não estou bem certo de qual janela vejo o Sol e se de noite a fome se alimenta realmente da chegada do dia. E ainda sussurrava à Alice, Alice, Alice? Mas, Alice, será que me ouvia?

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