Olhar Filosófico
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Desde os tempos mais remotos dessa jovem e apocalíptica humanidade, aliás, principalmente a partir desses tempos, a memória é o lugar, a criação, a estrutura metafísica de ser que mais caracteriza o animal que se fez homem ou a natureza que se mostrou consciência.
A memória, sabe-se lá de quando até onde (ou vice-versa), é o elemento a constituir de fato todo o sentido do mundo, todo o sentido do todo, toda a argamassa do tempo. Em qualquer traço de cultura socioambiental (incluído todo e qualquer animal, todo e qualquer inseto, toda e qualquer planta e, por que não, toda e qualquer pedra de todo e qualquer reino), a memória é a presença do fato vivido, sentido e narrado. A memória é para que o tempo seja. E somos todos seus criados e veneradores, seus senhores e malfeitores, seus malditos filhos e dignos seres.
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Dentre os gregos, mnemosine (memória), a grande mãe das tantas musas inspiradoras para as criações da linguagem, em êxtase, a poética, era filha de Urano (céu, em todas as suas possibilidades e potencialidades) e Gaia (Terra, em todas as suas possibilidades e potencialidades) e mais do que inspirar narrativas e técnicas de belezas benditas, era o alfa e o ômega de todo o senso possível daquela cultura e, essencialmente, senhora dos destinos consumados ou vindouros. Sem mnemosine, sua personificação que tudo pode presentificar, trazer a tona ou aprofundar-se na inconsciência, nada seria para si, tal como espelho a refletir a mancha, o reflexo, o nexo e a relação. De difícil lógica filial, provinda dos pais que já são filho, mãe e esposa um para o outro, nasce subordinada à governança e os supera (e a quaisquer outros), pois sem ela, não há um eles, mas sem eles, dona de si, se sustentaria e nasceria de outras, outros e dentre todas as coisas e sobre todas as forças.
Nas culturas negras banhadas nas cores da umbanda, é Nanã Burukê, matriarca das potentes orixás femininas, senhora dos segredos contidos na sabedoria da memória ou da memória na sabedoria, o extraordinário dos pântanos, quem dá o tom daquilo que está guardado, gerado e retornado ao barro. Lembrança é sempre água e terra, terreno lodoso e habitat de mundos, tudo aquilo que se apresenta como afeto na incerteza.
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Para os egípcios, dos mais complexos povos da antiguidade das gentes, Thoth, em tantas lendas, filho mais velho de Rá (poderoso em absoluto, Sol e clarividente) num só tempo infinito, é sabedoria, cura e magia. Por isso e mais, memória é o centro onde orbitam todo conhecimento, toda sugestão e toda regeneração das espécies.
Da memória surgiram o pós-sentido e a pós-certeza, a brutalidade do estado de crença, a esperança do estado de graça.
No judaísmo, é a língua que marca o tempo e faz a identidade do julgado povo escolhido, do aramaico ao iídiche, do hebraico ao karaim. Gago e desmerecido, Moisés grita lembranças que supõe do nada à criação. O desespero do órfão, em seu grito gutural pelo afeto do pai silente, transferiu uma nova memória ao mundo. E dentre os patriarcas, Abraão que oferece o filho ao desejo de ser atendido, visto ou reconhecido, é digna a compaixão aflita e a certeza plena daquilo que pode ser o sentido integral da entrega. A memória é deusa polimorfa circunscrita às leis da matéria.
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Entre os irmãos muçulmanos se fez presente como narrativa continuada dos livros de antes e da profecia definitiva do amanhã. Fechada numa fala autêntica do último dos profetas, Muhammad (que a paz esteja com ele), memória mostra-se literalmente como leitura ou recitação, Corão. Ora de forma dura ora de maneira suave, como humanamente as palavras agem, desenrola-se o novelo dos segredos revelados pouco a pouco. Segredo que antes de tudo é a lembrança de um esquecimento, força de um querer manifestado canto e chamamento de súplica (salat), submissão (islã).
E no cristianismo, assim, talvez, o ápice seja atingido. Na confusão criativa ou na aceitação total do inefável, gera-se um excêntrico monoteísmo de um Deus, de onde tudo é um, mas que são três pessoas. E esse afeiçoado às criaturas, Pai que se rebaixa à insignificância dos criados, nos propõe seu reino entre a parábola e o evangelho e o Seu verbo se faz vinho e alimento. Fazei isto em memória de mim! Eis a fórmula sacramentada da lembrança presente toda vez que evocada. E praticada. O Filho-Deus se abandona à memória do Pai para que se mostre o Espírito até o fim dos tempos. Se o Reinado aqui permanece, é pelo pão, pela carne, pela memória da Justiça, enfim, restabelecida como no princípio, agora e sempre.
E tantas e tantas outras religiões e sussurros mnemônicos, tantas e tantas maneiras de se dizer eu te amo ou desviar o olhar e seguir numa lógica própria, num povo único, num estilo distinto, numa tentativa e erro das idas e vindas da lembrança, das memórias ainda por se inventar.
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De meu afeto, aquela lembrança. Antes dos deuses e seus furacões, um cão e minha mãe. Fez-se memória dentro de minha alma seu gesto limpando aquele quintal, desinfetando com creolina, cada canto por onde Leão passava. E minha visão de tempo sustentada, é essa felicidade vivida, memória que me trouxe à vida. Com carinho, com afeto. Um cão, senhor de si, observando o cuidado da assepsia, uma mãe senhora da graça, com a vassoura, a paciência, um pouco de água e a creolina. Tudo é um e também sou paisagem revisitada. Deus ali é minha memória em estado bruto, para todo sempre no cheiro daquele céu de creolina.
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